domingo, 31 de maio de 2009

De Volta para o Futuro – um marco do cinema de adolescentes Por Tiago Bacelar






 Em 1985, o produtor executivo Steven Spielberg e o diretor Robert Zemeckis uniram-se para produzir uma comédia de aventura com um elenco de atores na sua maioria desconhecidos e com um enredo sobre viagens através do tempo. “De Volta para o Futuro” foi concebido inicialmente como filme único. A inocência e o humor desta produção se atrelaram ao padrão cultural, que marcou uma geração de norte-americanos.
 O mundo diegético criado para adentrar no imaginário dos espectadores tornou-se mais evidente na definição dos contrastes entre os vários períodos temporais dos três filmes da trilogia. Um exemplo disso é o aspecto temporal da localização central da praça municipal de Hill Valley e a maneira como ela evoluiu de 1955 para 1985. O resultado do planejamento de produção de Larry Paull reflete uma Hill Valley instantaneamente reconhecível e moderna, apesar de um pouco gasta pelo tempo.
 Os dois filmes seguintes da trilogia deram origem a um novo tipo de continuidade, única na história do cinema. Uma vez consolidada na mente do espectador, a viabilidade do invento de Doc Brown para viagens no tempo, o diretor Robert Zemeckis pôde fazer algumas experimentações. Nas seqüências do filme, retornamos ao primeiro longa-metragem da série e revivemos cenas do mesmo através de perspectivas totalmente diferentes.
 Com isso, a produção estimula a memória dos espectadores de uma forma semelhante a revermos velhos amigos depois de um longo tempo. A máquina do tempo foi modificada inúmeras vezes. Primeiramente, ela seria feita de uma geladeira velha. Depois, os produtores viram o DeLorean como um instrumento perfeito para as viagens no tempo. O supervisor de efeitos especiais, Kevin Pike, montou o DeLorean do filme a partir de três DeLoreans, modelo DMC-12, com adição de peças de aeronaves, arrumadas em casas de peças eletrônicas, várias luzinhas e circuitos que piscam na hora certa para a história.
 Todo esse trabalho serve de veículo para os personagens no filme irem e voltarem no tempo. Na primeira viagem temporal, em que Doc Brown usa seu cachorro como teste, nós encontramos dois efeitos especiais. Quando o carro parte, duas linhas retas de gasolina, representando o alinhamento das rodas do DeLorean são acesas com um lança-chamas. Na volta, o carro está congelado, graças a jatos de nitrogênio líquido. O primeiro filme da trilogia de “De Volta para o Futuro” tem apenas 32 efeitos especiais.
 O roteiro de “De Volta para o Futuro” foi iniciado em setembro de 1980 pelo roteirista e produtor do filme Bob Gale. A escolha dos anos 50 para o cenário do passado foi logística, em virtude do fato de um adolescente de 17 anos ter que retornar ao ano, em que seus pais tinham a mesma idade. E também porque nos anos 50 nasceu a cultura adolescente americana. Foi a primeira vez que um filme foi construído do ponto de vista de um adolescente.
 Nos anos 50, os adolescentes americanos ganharam poder da mídia, poder de comprar coisas, tornaram-se um poder econômico. Os livros “A Máquina do Tempo”, de H.G. Wells, e “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens, foram importantes para inspirar Bob Gale a criar “De Volta para o Futuro”. O filme segue a mesma linha de “A Máquina do Tempo”, a mesma noção de H.G. Welles, que é viajar através do tempo, mas não no espaço.
Não se pode deixar de citar o filme, de 1983, “No Limite da Realidade”, de Joe Dante, John Landis, Steven Spielberg e George Miller, o filme “A Máquina do Tempo (1961)”, de George Pal, e os quadrinhos do Super-homem como referências para a concepção do roteiro de “De Volta para o Futuro”. O roteiro inicialmente previa que o personagem de Michael J. Fox voltaria para o futuro numa explosão nuclear.
Só essa cena custaria um milhão de dólares, muito dinheiro para a época. Sem verba para tal, os produtores agiram acertadamente ao substituí-la pelo raio, unindo ao relógio a metáfora do tempo muito mais dentro da concepção do filme. O roteiro foi destinado inicialmente para a Columbia Pictures, no início dos anos 80. Nessa época, os filmes adolescentes eram censurados por serem comédias sobre bebidas, drogas e sexo. Podemos citar como exemplo as produções “Uma Escola Muito Especial”, de Noel Black, e “Clube dos Cafajestes”, de John Landis.
Dentre as negativas dos estúdios pelo roteiro, a resposta mais polêmica partiu da Disney, que achou a relação de mãe e filho no filme como sujeira demais. O ambiente do filme era suave, tão acessível e tão cativante. A intenção de Bob Gale não foi lasciva, não foi de maldade. Não era para ser gratuitamente estimulante. Lea Thompson foi brilhante, pois a interpretou como uma menina. Ela não tinha o ar de mãe quando a interpretou.
Thompson interpretava o que a menina sentia quando este garoto misterioso, interessante, chega à cidade. A pureza do seu desempenho, a pureza da intenção de Bob Gale em seu roteiro, de contar uma história contagiante retira qualquer sugestão estranha sobre a relação de Marty McFly com sua mãe. Steven Spielberg, que já tinha trabalhado antes com Robert Zemeckis, foi um dos primeiros a se interessar pelo roteiro. E graças a ele, o filme saiu pela Universal.
 A maquiagem do filme foi muito importante, transformando atores jovens em pessoas 30 anos mais velhas do que são. Isso deu um contraste muito interessante entre os personagens de 1955 e 1985, se tornando um desafio de interpretação para esses atores, que tiveram que encarnar uma personalidade de um adolescente e de uma pessoa já adulta. Para tornar essa atuação o mais realista possível, o método de interpretação de Constantin Stanislavsky, que requer que o ator se transforme no personagem, aja como ele, sinta como ele.
 Christopher Lloyd inspirou-se para fazer seu personagem Doc Brown no maestro britânico Leopold Stokowski, famoso por Fantasia (1940), da Disney. Lloyd pegou seu cabelo amalucado e despenteado e seus gestos exagerados para interpretar o cientista louco. Doc Brown anda como se conduzisse a orquestra do mundo. Por estar fazendo na época o seriado Family Ties, Michael J. Fox chegou a negar a participação no filme de “De Volta para o Futuro”.
 O ator Eric Stoltz chegou a atuar como Marty McFly, mas foi descartado por não atuar de forma convincente como um adolescente. Dessa forma, Bob Gale foi a Michael J. Fox novamente para que ele lesse o roteiro. Foi feito um acordo com a NBC para sua entrada em “De Volta para o Futuro”. Ele gravava o seriado de manhã e o filme de noite. Fox gostou tanto do roteiro de “De Volta para o Futuro”, que durante as gravações do filme em conjunto com o seriado, chegava a dormir a apenas uma ou duas horas por dia. Essa sua dedicação transformou sua atuação de Marty McFly numa das mais marcantes da história do cinema.
A química de Fox e Lloyd foi perfeita e contribuiu para transformar “De Volta para o Futuro” num dos maiores clássicos de ficção científica já produzidos. Thomas F. Wilson ficou estigmatizado por ter interpretado toda a família de vilões Biff Tannen. Um dos vilões mais incríveis já construídos. Sádico, atrapalhado e violento. A direção de arte foi feita brilhantemente por Margie Stone McShirley e William James Teegarden. Os cenários de 1955 foram fielmente retirados dos anos 50 como o estabelecimento “10 Days in Cuba”, os carros, enfim, facilitando o trabalho do ator de incorporar a alma da personagem.
McShirley e Teegarden brincam com o espectador logo no começo do filme, quando nos planos dos relógios de Doc Brown, vemos em um deles, um homem pendurado em um dos ponteiros. É uma clara referência a seqüência do raio, em 1955. Nela, Doc Brown fica pendurado no ponteiro do relógio, quando tenta enviar Marty de volta para 1985.
Além disso, a cena foi inspirada no filme Safety Last (1923), dirigido por Fred Newmeyer e Sam Taylor, com Harold Lloyd, Mildred Davis e Bill Strother. A data que Marty viaja para o passado, cinco de novembro, é a mesma do filme “Um século em 43 minutos (1979)”, de Nicholas Meyer em que H.G. Wells viaja para o futuro em busca de Jack, o Estripador, que fugiu da polícia em sua máquina do tempo.
 Quando Marty McFly conecta sua guitarra em uma caixa amplificadora no laboratório de Doc Brown aparece o termo CRM-114, em homenagem a dois filmes de Stanley Kubrick. CRM é o decodificador de mensagens de Dr. Fantástico (1964) e 114 é o número serial da exploração em Júpiter, de 2001 Uma Odisséia no Espaço (1968). Na direção da pick-up, que Marty arruma uma carona para chegar a escola, ao som de “The Power of Love”, está nada mais, nada menos, que o produtor executivo de “De Volta para o Futuro”, Steven Spielberg.
 Em 1955, Michael J. Fox entra no quatro do seu pai George McFly (Crispin Glover) vestido de Darth Vader, um Extra-Terrestre do Planeta Vulcano, tocando uma música da Banda de Eddie Van Halen, um ícone do rock pesado dos anos 70. Nessa cena, temos referência a Guerra nas Estrelas com Darth Vader, a Star Trek com o Planeta Vulcano e ao filme de Steven Spielberg, ET – o Extra-Terrestre.
 Há pequenos detalhes do roteiro que somente um espectador mais atento vai perceber. O bêbado no banco da praça, quando Marty volta para o futuro, é o prefeito de Hill Valley, de 1955. Dessa forma, o roteiro de Bob Gale e Robert Zemeckis é extremamente criativo, puxando para o lado do humor nas cenas em Marty se encontra com sua avó, sua mãe, seu pai e seu tio. Curiosamente, o programa de TV que seu pai está assistindo em 1985, é o mesmo que seu avô está vendo em 1955, num aparelho recém-comprado.
 Essas tiradas do roteiro ficam bem claras, graças ao ótimo trabalho de montagem de Arthur Schmidt e Harry Keramidas. As seqüências de ação ficaram espetaculares, graças a um ritmo alucinante de planos, que nos anos 80 tinham média de seis segundos de duração. O foco da velocidade do filme mudou da dimensão verbal para a visual. 
O designer de produção, Lawrence Paull, buscou para o filme um visual realista, levando a produção visualmente para antes de 1955. Houve muita pesquisa para a fotografia de Dean Cundey nas revistas Life e Look, em livros dos anos 40 e 50 e em filmes feitos na época. Tudo isso para criar o conceito visual do filme, cuidando da mise-en-scéne, compondo os elementos dentro da cena, iluminando cenários, posicionando a câmera e a continuidade da luz.
A fotografia de “De Volta para o Futuro” é realista, pois simula a realidade, mas não a copia inteiramente. Evita sombras, prioriza fill light (luz de preenchimento), cenários bem iluminados, imagem clara e límpida, sem contrastes muito fortes. Nessa construção dos anos 50, o figurino ultracolorido de Joanna Johnston foi essencial para que a busca para um mundo diegético real viesse à tona. Com a mudança do papel de Marty McFly, de Eric Stoltz para Michael J. Fox, a figurinista Joanna Johnston teve que refazer todo o figurino do personagem, adaptando-o ao novo ator escolhido para fazer parte do cast do filme. Para construir a Hill Valley de 1955 e 1985 foi usada uma área da Universal. Primeiro foi filmado os anos 50 da cidade e depois ela foi transformada na metrópole de trinta anos depois.
A trilha sonora do filme, no quesito score, ficou sob a tutela de Alan Silvestri. É uma composição marcante, contemporânea e nostálgica ao mesmo tempo. Foram 98 componentes, a orquestra criada para dar vida ao score do filme. Na época, tornou-se a maior orquestra montada na história da Universal Pictures. Huey Lewis fez duas canções para o filme: The Power of Love e Back in Time, além de ter feito sua estréia como ator, interpretando um juiz de um concurso de bandas na escola de Hill Valley. É marcante a seqüência no Baile Submarino em Marty McFly inventa o Rock, tocando a música “Johnny B. Goode”, escrita por Chuck Berry em 1958.
No filme, é feita uma referência direta a isso quando o vocalista dos Starlighters, Marvin Berry liga para o seu primo Chuck Berry para fazer com que ele escutasse a música que Marty estava tocando. Nessa mesma seqüência, há um objeto não existente naquele mundo diegético de 1955. A guitarra Gibson ES-355 usada por Marty só seria lançada quatro anos depois, em 1959.
Há uma presença marcante no filme do vococentrismo, em que a voz humana se destaca dentre os efeitos sonoros, produzidos pelos Foley Artists, e o score de Alan Silvestri. “De Volta para o Futuro” utiliza-se também em sua trilha sonora da Síncrese, uma sincronia labial de um diálogo, havendo harmonia entre som e imagem.
Na chegada ao baile, de Marty com sua mãe, temos um exemplo de um uso adequado do Eixo de 180 graus com a câmera posicionada na frente dos dois atores, fazendo os cortes de plano médio para contraplano médio. Essa cena é feita sob o ponto de vista de Marty, que descobre vícios de sua mãe, como o cigarro.
Outro ponto a se analisar é que Marty está no lado direito da tela, que é uma tendência do olho humano. Ao sair do ponto de fuga, o olho se dirige naturalmente para o lado direito, que tem maior predominância na cena. Um exemplo disso é quando vamos ler um jornal. A tendência é lermos primeiro as páginas ímpares por estarem do lado direito.
O primeiro filme da trilogia de “De Volta para o Futuro”, que faturou em todo mundo 350 milhões de dólares, continua até hoje representando a magia do cinema de forma atemporal. A produção de Robert Zemeckis e Bob Gale é considerada até hoje uma das dez melhores produções de ficção científica. Já foi citada pelo presidente Ronald Reagan, em 1986, usando em seu discurso a frase do filme “Onde estamos indo, não precisamos de estradas”. Isso mostra que filme conseguiu atingir seu objetivo, construir no imaginário americano, um mundo diegético dos anos 50, em que nasceu o sonho de ser adolescente.

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