domingo, 28 de outubro de 2007

As Grandes Editoras de Mangá

As Grandes Editoras de Mangá
Por Tiago Bacelar
No Japão existe cerca de 120 editoras de mangás, divididas em pequeno, médio e grande porte. As médias são responsáveis por mangás mais refinados e selecionados para um leitor mais exigente. Para enfrentarem a competição entre as concorrentes no mercado editorial de mangás, as pequenas priorizam a quantidade sobre a qualidade, seguindo a regra de quanto mais títulos à editora tiver melhor será para ela.
Apesar de as editoras de pequeno e médio porte serem em grande número, é as grandes editoras que determinam os caminhos a seres seguidos pelo mercado editorial, em virtude de suas tiragens astronômicas, dignas de inveja por qualquer grande empresa do gênero no ocidente. Dentre as três maiores estão a Kodansha, a Shueisha e a Shogakukan. Além dessas, existem cerca de dez outras editoras que ficam em segundo lugar, incluindo nelas a Akita Shoten, a Kadokawa Shouten, a Square Enix, a Futabasha, a Shounen Gahosha, a Tokuma Shoten, a Seishinsha, a Shodensha e a Hakusensha. Isto sem mencionar as incontáveis editoras de fundo de quintal.
As grandes editoras também publicam revistas e livros não relacionados aos mangás. Estima-se que existam cerca de seis mil artistas profissionais de mangá no Japão. Dos quais, todos têm publicado pelo menos um volume de mangá. A maioria deles tem que trabalhar no dia a dia como assistentes de mangakas famosos ou são obrigados a complementarem sua renda com outras atividades. Apenas 600 deles ou dez por cento do total, conseguem fazer um salário acima da média vivendo apenas do seu trabalho como desenhista de mangá. Existe ainda uma grande quantidade de amadores que produzem pequenas revistas concebidas para circulação privadas, chamadas de Dojinshi[1]. No Japão, os mangakas possuem uma certa independência e desenvolvem os seus trabalhos através de projetos realizados em editoras e empresas jornalísticas, onde estão ligados diretamente. Nesse caso, não há uma obrigação deles estarem também vinculados a algo parecido como os syndicates norte-americanos[2]. A editora Kodansha é uma das mais importantes editoras de mangás no Japão, que por consecutivas gerações é comandada pela família Noma. Seiji Noma fundou a editora em 1909, ano da publicação da primeira revista, a Yuben. Em 1911, foi à vez do lançamento da Kodan Club, uma coletânea mensal de histórias tradicionais da cultura japonesa.
O sucesso da Kodan Club assegurou o futuro da editora. Em 1914, lança a Shonen-kurabu, publicada mensalmente, em 1923, a semanal Shoujo club, e em 1926, a mensal Younen Club. Estas publicações foram, de certo modo, o protótipo dos enormes mangás que são publicados hoje em dia no Japão, especializados de acordo com a faixa etária e o sexo do leitor. Nos anos 30, a Kodansha tinha alcançado a liderança no mercado com a publicação de nove revistas. A publicação de mangás para valer só começou no final dos anos 50, quando Sawako Noma assumiu a presidência da editora.
A Kodansha tem hoje um capital de giro de 300 milhões de yens[3] e uma venda anual de 189,4 bilhões de yens[4]. A Shonen Magazine, lançada no dia 17 de Março de 1959 foi à primeira revista da Kodansha, do estilo Shonen[5], e é hoje uma das mais importantes do Japão com circulação de mais de 4,5 milhões de exemplares por semana. Nas páginas da Shonen Magazine, já passaram séries renomadas como: Get Backers, de Yuka Aoki e Rando Ayamine, Samurai Deeper Kyo, de Kamijyo Akimine, Groove Adventure Rave, de Majima Hiro e Air Gear, de “Oh! Great!”, mesmo autor do grande sucesso Himiko-den. Além de Hajime No Ippo, de Morikawa Jouj, Tsubasa: Reservoir Chronicle, do Clamp, Tantei Gakuen Q[6], de Amagi Seimaru e Satou Humiya, Magister Negi Magi e o sucesso Love Hina, de Ken Akamatsu, e várias outros que não caberiam aqui. Vale-se ressaltar que no caso da revista Shonen Magazine, são publicados capítulos de cerca de 40 títulos diferentes, desenhados por autores diferentes.
Em média, cada um é publicado com cerca de 20 páginas, o que daria em torno de 800 páginas por edição semanal. Além da Shonen Magazine, da Kodan Club e da Yuben, a Kodansha publica outros títulos na área de mangás como: a Shukan Shonen Magazine, de publicação semanal; a Magazine Special, mensal; a Gekkan Shonen Magazine, mensal; a Young Magazine, mensal; a Young Magazine Uppers, quinzenal, a Magazine Z, mensal, a Comic Bon-Bon, mensal; e a Morning, semanal. Juntas todas as revistas vendem aproximadamente 45 milhões de exemplares por mês, o que mostra o quanto o mangá está consolidado no Japão como hábito de leitura. No estilo Shoujo[7], o destaque fica para a Nakayoshi[8], revista mensal, criada em Dezembro de 1954, com uma média 700 páginas por edição. Vários mangás se tornaram famosos nessa publicação. Dentre eles estão: Bishoujo Senshi Sailor Moon[9], de Naoko Takeuchi e Card Captor Sakura, do Clamp. Surgida em 1962, a Afternoon, da editora Kodansha, é uma revista mensal, com média de 1000 páginas por edição. Em média, vende cerca de três milhões de cópias por semana. Nas suas páginas, saíram sucessos como Mahou Kishi Rayearth, dentre outros.
As outras revistas femininas da Kodansha são: a Afternoon Season Zokan, bimestral; a Evening, mensal; a Bessatsu Friend[10], mensal; a Kiss, quinzenal, a Be Love, quinzenal; a Be Love Parfait, mensal; a Dessert, mensal; a The Dessert, bimensal; a Juliet, bimensal; a One more Kiss, bimensal; e a Vanilla, mensal. Todas elas têm uma tiragem de aproximadamente 22 milhões de exemplares por mês[11]. A Kodansha publica ainda edições no estilo Shogaku[12] que são elas: a Tanoshii Yochien[13], mensal; a Otomodachi, mensal; a Genki, mensal; a TV Magazine, mensal; e a NHK-no Okasanto Issho[14], mensal. Essas revistas, que não são os carros-chefes da Kodansha, possuem uma tiragem de quatro milhões de exemplares por mês.
Mesmo assim tem o seu público garantido a cada edição publicada. A Shogakukan é uma das três maiores editoras do Japão. Ela foi fundada, em 1922, por Takeo Aiga. Acabou se especializando em livros voltados para o público infantil, juvenil e outros na área da educação. Na publicação de mangás, posso citar a Shonen Sunday, para jovens do sexo masculino, a Big Comic para o público adulto e a Shoujo Comic para as garotas.
A Shogakukan foi fundada inicialmente como uma editora para publicação de livros escolares. Nessa época, foram lançadas revistas, voltadas para estudantes de escolas de nível básico, como também, publicações mensais para os professores dessas instituições japonesas. O objetivo inicial era criar, no mercado editorial nipônico, uma imagem bastante positiva perante as classes mais conservadoras. Dessa forma, a editora Shogakukan teria a imagem de uma empresa “preocupada” com qualidade de ensino das crianças no Japão. Essa variedade de publicações foi expandida, através do lançamento de revistas para crianças em idade pré-escolar, livros de pintura, dicionários, livros ilustrados para consulta e enciclopédias.
Em 17 de março de 1959, lança a sua primeira revista semanal de mangá, a Shonen Sunday, voltada para os garotos. Vários mangás se tornaram populares nessa revista. Dentre eles estão: Osomatsukun, de Fujio Akatsuka, e Ranma ½, de Rumiko Takahashi. Atualmente, Meitantei Conan[15] está sendo publicado na revista, onde estreou em 1996, e é um dos mais vendidos do Japão. A Shonen Sunday tem uma média de 500 páginas e uma publicação de quatro milhões de exemplares por edição. A Big Comic é publicada pela Shogakukan desde abril de 1968.
Quando os leitores de mangás passaram pela universidade, e, começaram a trabalhar, surpreendentemente, eles continuaram acompanhando as histórias lançadas pelas editoras japonesas. Pensando em atingir esse público, a Shogakukan decidiu lançar uma nova revista de mangá voltada para o público adulto, no estilo geki-ga, o mesmo que falei anteriormente, que no início se apropriou das inovações propostas por Osamu Tezuka, após a Segunda Guerra Mundial. No seu começo, ela era mensal, e hoje é semanal. O mais famoso mangá publicado pela Big Comic foi Golgo 13, uma história de espionagem e ação, do mangaka Takao Saito. Foi por essa razão, que Golgo 13 foi lançado por 30 anos, com grande sucesso. Hoje a Shogakukan publica 19 revistas de mangás e vende cerca de 200 milhões de mangás por ano.
Em 1925, a Shueisha foi criada pela editora Shogakukan com a finalidade de publicar revistas de entretenimento. Em agosto de 1926, a Shueisha, segundo Poitras[16], “tornou-se uma companhia independente”. Em 1949, a editora Shueisha foi criada. Desde então, tem continuado a publicar revistas populares uma depois da outra e se tornou uma das líderes da vendagem de mangás no Japão.
A Shonen Jump[17] , revista semanal no estilo Shonen, tem uma média de 600 a 700 páginas por edição. É uma revista de mangás bastante popular entre os jovens do sexo masculino no Japão. Criada em 1956, acabou se tornando uma das publicações mais importantes do Japão. Na sua época de ouro, a Shonen Jump chegou a vender sete milhões de cópias por edição. Tudo isso, graças a Akira Toriyama com a obra Dragon Ball e a Motoei Shinzawa com o Colégio Kimengumi. Recentemente, por causa do aumento de títulos populares, lançados por outras editoras, sua circulação foi reduzida para cinco milhões de cópias, sendo ainda bastante alta se comparada com os padrões japoneses.

Ainda existe a edição semanal, Shukan Shonen Jump e a mensal Gekkan Shonen Jump. Muitos dos mangás da Shueisha conseguiram romper todas as barreiras culturais e fizeram sucesso em outros países da Ásia, Europa e na América. Criada em 1959, com a finalidade de atingir o público juvenil feminino, a Margaret tem sua importância histórica no que se refere ao mangá Shoujo. Isso deve a escassez desses tipos de mangás, nessa época no Japão, pois eles não eram ainda muito populares. Publicada semanalmente, com uma média de 500 páginas, a Margaret conquistou o público, e nela saíram séries como Hana Yori Dango, Ichigatsu ni wa Christmas, POPS e Nurse Angel Ririka S.O.S., de Ikeno Koi. A Shueisha também publica uma variedade de revistas voltadas para o público juvenil e adulto. Os lançamentos da Shueisha não se limitam aos mangás, também são editados livros infantis, romances, dicionários, livros artísticos. Tudo isso tornou a Shueisha uma das três maiores editoras do Japão, juntamente com a Shogakukan e a Kodansha. No Japão, os mangakas não só vivem de desenhar, como são ricos, muito famosos e conhecidos do público. Não é raro, vê-los cercados por otakus para darem autógrafos, são constantemente convidados a programas especiais de televisão, fazem comerciais de produtos, mesmo não relacionados com o mangá, são objeto de artigos em jornais, revistas, biografias e, se o sucesso é muito grande, segundo Sharer[18], “ficam prisioneiros da própria fama”.
Um exemplo disso é o caso do mangaka Akira Toriyama, que em virtude do sucesso de Dragon Ball, que chegou a vender 270 milhões de cópias no Japão, foi proibido de viajar de avião pela editora Shueisha. Isso aconteceu, por incrível que possa parecer, pois eles poderiam perder Toriyama em algum acidente, o responsável pela mina de ouro, que rendia milhares de dólares a editora Shueisha. É por isso que muitos mangakas iniciantes preferem trabalhar por conta própria com receio de perder a sua liberdade como artista e pessoal. Além disso, a meu ver, há outros fatores que explicam a condição diferenciada do mangaka em relação à de desenhistas de outros países.
Em primeiro lugar, não existe nenhuma concorrência estrangeira no mercado editorial japonês, o que possibilita o surgimento de várias oportunidades de trabalho para os mangakas nesse campo de atuação. A produção é praticamente 100% nacional, com raríssimas traduções de quadrinhos estrangeiros. A razão para isso seria que as histórias ocidentais não são populares entre os japoneses, pois têm pouca penetração. Apesar de deixarem de ser conhecidas através de merchandising.
A leitura e o conhecimento, por exemplo, dos comics americanos e europeus restringe-se apenas aos intelectuais e os próprios mangakas. As pessoas têm simpatia pelos personagens estrangeiros estampados em diversos produtos de merchandising, como artigos de papelaria e confecções. Mas, essa identificação acaba quando são colocados no contexto de uma história ou na seqüência periódica de uma revista.
[1] Fanzines.
[2] São instituições que empregam principalmente desenhistas, jornalistas, críticos e cronistas. Elas têm uma função parecida com a de uma agência de notícias, que vendem o seu produto para jornais e revistas.
[3] Aproximadamente três milhões de dólares.
[4] Aproximadamente um bilhão e 640 milhões de dólares.
[5] Voltada para o público adolescente masculino.
[6] Detetive Escolar Q.
[7] Voltado para o público adolescente feminino.
[8] Ser amigo.
[9] A bonita guerreira Sailor Moon.
[10] Suplemento amigo.
[11] Excluem-se desse número as que são bimestrais.
[12] Voltada para o público infantil.
[13] Histórias alegres e agradáveis.
[14] Acompanhados e unidos na firme terra da NHK.
[15] Detetive Conan.
[16] POITRAS, Gilles. Manga and Anime: Everything a Fan Needs to Know, Stone Bridge Press. Estados Unidos. 2000. p. 96.
[17] Salto Jovem.
[18] SHARER, Liana, A History of Manga, Page Wise, Los Angeles, Estados Unidos. 2000.p. 89.

Os Animais e monstros nos mangás


Os Animais e Monstros nos Mangás

Por Tiago Bacelar

Depois da consolidação do mangá e do dojinshi no mercado editorial japonês, o leitor deve se perguntar que monstros e animais são aqueles espalhados em todos os gêneros, sejam eles shogaku, shoujo, shonen, sendo comuns adjetivá-los como Kawaii[1]. Os mangakas propositadamente os colocam como seres aparentemente inofensivos, mas, bastante agressivos quando incomodados. Então, por que motivo e quando os mangakas começaram a seguir essa linha editorial?
A resposta para essa questão está no antigo Japão, mais precisamente durante a Era Heian, onde os japoneses começaram a desenhar caricaturas de pessoas em pergaminhos com imagens numa linguagem narrativa. Dentre eles, no período de 1053 a 1140, viveu um monge budista, chamado Toba Sojo, o qual teria criado uma série em quatro volumes, denominada de Choju Jibutsu Kigakan[2], e conhecida como Choju Giga. Existem especialistas, que defendem a teoria, de que apenas dois deles foram produzidos pelo artista. Os primeiros registros do aparecimento de algum monstro em ilustrações podem ser encontrados no Choju Giga. Mas, que tipos de criaturas existem nesses pergaminhos? Fazendo uma análise deles, podem-se encontrar imagens de coelhos, sapos e raposas. Numa forma de sátira, esses animais se portam e se vestem como seres humanos. Nos pergaminhos, os coelhos seriam figuras representativas dos lordes e os sapos seriam dos clérigos budistas. Toba quis fazer um protesto contra as famílias tradicionais e os membros da Igreja, que andavam degradadas, disputando o poder e arruinando as classes menos favorecidas. Na Era Kamakura, essas ilustrações de animais evoluíram para sátiras de ensinamentos budistas, as quais mostravam seqüências grotescas de sofrimento e dor. Mas, o que isso tem haver com os mangás? As respostas são muitas. A principal delas é que os pergaminhos japoneses são fontes inesgotáveis para criação de histórias, de personagens, enfim um deleite para os mangakas.
Um exemplo disso é o pergaminho do século XVI, Nezumi no soushi e-maki[3], onde o protagonista é um rato nobre, que para livrar seus descendentes de viverem como rejeitados pela sociedade, casa-se com uma humana. Mas, como? Simples, ele se transforma em um homem. Entretanto, em uma dessas transformações, a esposa acaba descobrindo que o seu marido é literalmente um rato. Essa obra já mostra características dos quadrinhos, pois se pode perceber a fala de cada um aparecendo ao lado dos seus respectivos personagens, sendo diferente do uso das tradicionais legendas embaixo de cada imagem. Essa obra trouxe, segundo Okuidara[4], “várias influências sobre vários artistas, pois os mesmos passaram a ver como era importante retratar não só humanos, a qual era um costume na época. Era a chegada a hora das ilustrações de animais e de objetos”. Esse foi o meio encontrado pelos criadores, para usarem as suas criações como uma forma de aliviar o estresse do dia a dia.
Enquanto isso, outros desenhistas usaram os pergaminhos como veículo para criticar a sociedade e as injustiças, que eram motivos de constantes protestos, cheios de sentimento e revolta. Pode-se comprovar isso, em várias obras japonesas do século XVII, como a Tsukumogami e-maki[5], lançada em dois volumes por um autor de nome desconhecido, um comerciante de Kyoto. De acordo com o livro Yin-Yang, quando os objetos completam 100 anos de existência, eles se tornam espectros para cumprirem a vingança contra os humanos. Estamos agora no período Kenpo do Japão, num sótão de uma casa abandonada, onde misteriosas vozes estão conversando. Elas dizem que foram jogadas pelos homens ali como se não fossem mais nada. O objetivo deles é mostrar a sociedade que eles ainda servem para alguma coisa.
Nesse meio tempo, o professor Kobun afirma, em uma conversa próximo dali, que todas as criações são iguais. A aparência delas é determinada por Yin, Yan e o Deus da Criação, que dá almas para todos nós. Quando nós perdemos nossas vidas, durante o Festival de Yin-Yan, o Deus da Criação nos transforma em espectros. Dito e feito, os objetos são transformados em espíritos com aparência de homens, mulheres, idosos, crianças, monstros e até mesmo bestas. Não importa como eles estejam, todos trazem medo para a humanidade. Essas entidades decidem trazer sofrimento e fome para os que lhe abandonaram a própria sorte. Quando apavorados e sem perspectiva de continuarem vivendo, os humanos sempre apelam para Deus ou para Buda.
Os espectros vêem que apesar de tudo, a vingança não serve para nada, e acabam ganhando finalmente a purificação eterna e divina. Elas passam a seguir as orientações do Deus da Criação, o único capaz de decidir o futuro dos seres vivos da Terra. Para guiá-los, eles recebem a ajuda de monges e xamãs para viverem como espectros da fé.
Dessa forma, o autor quis fazer uma sátira, à situação em que as pessoas idosas se encontravam, totalmente abandonadas pela sociedade, pelo governo e principalmente pelas famílias. Essa situação não deixa de ser até irônica, pois no Japão de hoje, existe um respeito profundo pelos mais idosos, que depois de se aposentarem podem curtir o resto de suas vidas com viagens, lazer e diversão. Esse clichê de dar vida a objetos é usado até hoje pelos mangakas em suas histórias.
Houve espaço também para histórias de amor entre animais e humanos. No século XVII foi lançada uma série de 13 pergaminhos, chamada de Otogi Zoshi. Dentre elas estava Tamamizu e-maki[6], publicado em dois volumes, que narra a história de uma raposa e sua paixão por uma jovem humana. Estamos na região de Toba, aonde o nobre Takayanagi no Saisho finalmente consegue virar pai de uma linda garotinha, chamada Menotogo no Tsukisae, depois de dedicar sua vida em prol dos deuses.
Passam-se 15 anos, e, a jovem acaba conhecendo a raposa Tamamizu[7], que se apaixona perdidamente por ela a primeira vista. Sem saber disso, Tsukisae volta para a casa, deixando o pequeno animal em dúvida sobre o motivo de tamanha diferença entre eles. Desesperado, Tamamizu transforma-se em uma garota e vai trabalhar na casa de sua amada. Depois de um período, a raposa descobre que Tsukisae tem pavor de cães e de qualquer tipo de animal da raça canina. Dessa forma, ele passa a escrever poemas melancólicos, detalhando todas as agonias de sua paixão impossível.
Nesse meio tempo, a mãe adotiva de Tamamizu fica a beira da morte e seus sentimentos se tornam cada vez mais turbulentos e confusos. Com a ajuda de seu tio raposa, sua mãe é salva, depois de um exorcismo para expulsar os espíritos malignos. Em virtude disso, Tamamizu ganha o título de Chujo no Kimi, destinado para as mulheres que servem à sacerdotisa no Palácio Imperial. Mesmo ao lado de sua amada, ele não está feliz com essa situação e decide revelar o seu amor, através de uma carta, contando até mesmo sobre a sua verdadeira forma. Tamamizu dá instruções para ela abrir a caixa com sua mensagem, quando recebesse sua vestimenta do conselho de sacerdotisa. Depois disso, ele desaparece nas sombras. Passam-se vários anos, e Tsukisae finalmente ler a carta. Quando termina a leitura, as lágrimas caem dos seus olhos. O final triste retrata bem o abismo iria se formar entre os mangás e os quadrinhos ocidentais.
Na série de pergaminhos Otogi Zoshi é possível encontrar uma outra história de amor no universo do Owl e-maki[8], de um autor desconhecido. Só, que desta vez, é entre uma coruja e um passarinho fêmea. O romance começa na montanha Kamewari, localizada na Província de Kaga. A coruja de 83 anos de vida preocupa-se ao saber que o Rei dos Pássaros, a Águia, está apaixonado por sua amada, a Princesa Bullfinch. Ao ouvirem toda a história, o galo Kurozaemon e a garça-real Shinbe sugerem o envio de uma carta, que revelasse tudo. O mais indicado para isso seria o Chapim Gosaku, amigo de infância do amor platônico do protagonista.
Dessa forma, a Coruja consegue convencer Gosaku a enviar sua carta de amor. Enquanto, a Princesa não recebe a correspondência, a Coruja suplica para Buda pelo não rejeitamento do seu pedido de namoro. Caso o pedido fosse atendido, a Coruja iria construir um tempo em ouro e prata em homenagem ao seu salvador. Ao ler a carta, a Coruja entende que a Princesa recusou a idéia de ter algo com ele, pois os mundos deles eram muito diferentes para gerar algum fruto. Entretanto, ele estava errado. Percebendo seu engano, a Coruja parte para o tão esperado encontro com Bullfinch.
Nesse meio tempo, a Águia descobre e envia um assassino para liquidar com a Princesa traidora. Chocado com a morte de sua amada, a Coruja pensa em cometer um haraquiri, mas desisti a pedido da Coruja Kisuke. Ele diz que existe uma chance de salvar sua amada. O protagonista deveria rezar para Azusa no Miko, uma divindade capaz de trazer os espíritos dos mortos de volta para a Terra. Com isso, a Coruja consegue ter a oportunidade de conversar mais uma vez com Bullfinch. Mais aliviado da dor de ver alguém tão querido se despedir tão repentinamente, a Coruja inicia uma longa jornada para passar os ensinamentos de Buda por todas as ilhas japonesas.
Depois dessa fase dos pergaminhos, vieram os mangás propriamente ditos. Um das mais antigas histórias em quadrinhos japonesas que um animal aparece falando e interagindo com humanos é Sho-chan no bouken[9], de Kawashima Katsuichi, publicado em 1914 (Para mais detalhes, veja Capítulo Um deste livro). Nele, o personagem Sho, aventura-se pelo mundo na companhia de um esquilo falante. Em 1931 foi lançado Norakuro, de Tagawa Suiho. A trama aborda as trapalhadas de um cachorro vira-lata de mesmo nome da obra, que decide entrar para o exército japonês.
Mesmo não levando jeito, Norakuro vai conquistando, aos poucos, todos os postos mais altos de comando. Vale-se ressaltar, que os todos os companheiros de Norakuro no exército eram animais, não havendo, assim, a presença de humanos. Entretanto, em muitos deles, como no mais famoso desse gênero, Kimba, de Osamu Tezuka, os mundos dos animais e dos humanos acabam de um jeito ou de outro se encontrando. Mesmo havendo várias tentativas por parte de alguns mangakas de mudar essa situação, não adianta. As histórias de animais sem humanos é algo raro e sem chance de acontecer, em virtude de não haver interesse por parte das editoras japonesas em publicar esses tipos de mangás.
Confirmando essa perspectiva, em 1940, chegou Kasei tanken[10], de Taro Asahi e Noboru Oshiro, o protagonista tem como assistentes na sua expedição ao planeta Marte, um cão e uma gata, que se vestem e se comportam como humanos. Esse título lembra e retrata os famosos mangás de Ficção Científica, criados por Osamu Tezuka e Komatsu Sakyo. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, o mangaka Keizo Shimada lançou o mangá Boken Dankichi[11]. Nesse título, o garoto Dankichi montou um esquisito exército, onde hipopótamos eram submarinos e os elefantes tinham a forma de tanques.
Nas duas décadas seguintes, muitas revistas shoujo resolveram trazer histórias com bichos, onde a maioria dos mangakas inspirava-se no mundo real, se utilizando nas histórias de animais de estimação, feras e outras vidas silvestres. Dentre elas estava Oshare no Mike-chan[12], onde uma gata da raça Mike, cuja origem é japonesa, se aventura pela vizinhança. A narrativa dessa obra é simples e de fácil entendimento pelo leitor. Entre 1953 e 1969, esses mangás foram marcados pelas histórias tristes de Matsumoto Akira, conhecido hoje como Matsumoto Leiji.
Os animais eram retratados de forma melancólica, pois Leiji não estava feliz desenhando esses tipos de mangás. Ele era obrigado pelos editores a seguir essa linha, a qual era a mesma do grupo 24-Nengumi. Sua carreira começou em 1953, na revista Manga Shonen, com a publicação da obra Mitsubachi no Bouken. Nos anos 60, se casou com a também desenhista Maki Miyako. Matsumoto só voltaria se empolgar com a profissão a partir dos anos 70, quando criou vários clássicos como Uchyu Senkan Yamato[13], Captain Harlock, Ginga Tetsudo 999[14] e Sennen Jo'ou[15].
No período que publicou mangás shoujo, Leiji desenhou vários personagens animais como: cãezinhos, ratinhos e gatinhos, que na sua maioria eram órfãos e sofriam com a perda da mãe. Dessa forma, o convívio do animal com o ser humano começa a aparecer de várias formas no mangá. Esse estilo acabou se tornando uma das marcas registradas do mangá moderno, criado por Osamu Tezuka e o grupo Tokiwa. Uma dessas variações pode ser vista no mangá Wata no Kuniboshi[16] , feito em 1974, por Yumiko Ooshima, a mesma que fazia parte da 24-Nengumi, sempre lutando pela consolidação do shoujo como estilo. Na história, a protagonista Neko, uma gata, foi abandonada pela primeira dona ainda bebê. Encontrada na rua faminta, Neko é levada para a família de uma outra família de humanos, onde ela vive grandes aventuras.
O mangá Bono-Bono, de Igarashi Mikio, começou a ser retratado em tiras, a partir de 1986, em um dos jornais mais importantes do Japão, o Asahi Shibum. Ele aborda o cotidiano de uma família de lontras. No ano seguinte, Bono-Bono ganhou sua versão encadernada, sendo encerrado em julho de 2003, com 23 volumes. Nas histórias desse gênero de mangás, a maioria dos animais compreende o que os humanos falam, mas, o inverso não acontece.
Os homens só supõem o que está sendo emitido pelos bichinhos. Essa busca para solucionar a dificuldade de comunicação entre o homem e o animal foi mostrada recentemente, em 1997, no mangá Guru-guru Pon-chan, de Satomi Ikezawa, publicado na revista Bessatsu Friend. Logo no início da história, o personagem Koizumi Yosuke inventa o Guru-guru Bone, um osso artificial que visava fazer com que a cadela da família, da raça Golden Retriever, chamada de Pon, pudesse falar. Mas, algo saiu errado e em vez de falar, Pon acaba virando um ser humano.
Porém, os efeitos não são permanentes. Dessa forma, ao girar o osso, ela volta a ser cachorro e quando está como animal, basta lambê-lo para virar humana novamente. Aparentemente, ela é para os que a vêem uma jovem qualquer e normal. Mas, na verdade, internamente, ela continua sendo um cachorro e não compreende os humanos. Por isso, em vários momentos da história, Pon corre atrás de gatos e prefere pescar com os dentes, em vez de usar uma vara de pescar.
Por ser considerado um shoujo mangá, obviamente tem romance e fantasia, e é daí que está o fator cômico dessa obra de Satomi Ikezawa. A autora começou sua carreira em 1984, com a obra Tenshi no Pheromone, na Bessatsu Friend. Em 1987, lança um dos seus maiores sucessos, Othelo. A trama conta à história de Yaya Higuchi, uma jovem de 16 anos, que começa a ter um sentimento profundo de tristeza e solidão. Ela não sabe nada sobre Nana, a outra personalidade completamente diferente da de Yaya e que está escondida em seu interior.
A banda de rock Juliet, formada por jovens bonitos, se separa. Mas, Yaya e outras garotas, fãs do grupo, continuam se vestindo como se fossem membros da Juliet. Certo dia, Yaya encontra, na escola, Harajuku, o vocalista da banda. Suas colegas de classes, Seri e Moe, descobrem esses encontros e começam a judiar de Yaya por se encontrar com um roqueiro. Ela fica muito chateada e se olha no espelho. De repente, seu alterego, Nana, assume o corpo de Yaya e dá uma verdadeira surra em Seri e Moe.
Depois desse incidente, toda vez que judiam de Yaya, Nana aparece para aplicar seu “julgamento divino”. Nana se aproxima de Moriyama, um garoto que Yaya gosta e o beija. Pula de um trem em movimento. Yaya sempre acorda sem se recordar de nada e com um sentimento de culpa em seu interior. Um mangá que segue basicamente a mesma linha, é D.N. Angel, de Yukiro Sugisaki, publicado pela Square Enix. No caso dessa série, Daisuke Niwa, sabe do seu outro ser, Dark Mousy, e pode até conversar com ele. Ao ver a foto de sua amada, Daisuke sente um aperto no seu coração e vira Dark Mousy. Seu alterego é um anjo negro, que rouba objetos com energia maligna para selá-las. Ikesawa se destacou também por mangás shoujo de sucesso como Mars.
Em Guru-guru Pon-chan, há um personagem, vizinho da família Koizumi, chamado Mirai Iwaki. Quando Pon se transforma em humana pela primeira vez, ela fica assustada e sai correndo para rua. Exatamente, no momento em que ia ser atingida por um carro, Pon acaba sendo salva por Mirai. Na seqüência, ela fica vermelha e se apaixona ele. A partir desse ponto, Ikesawa começa a fazer com que os leitores reflitam sobre a paixão exagerada do homem por um animal. O estudante de colegial, Mirai, acaba sendo contratado para ser a babá de Pon.
No decorrer da trama, ele passa por sérios apuros para que não descubram a identidade de sua amada, pois como Pon é igual a qualquer cadela, ela também entra no cio duas vezes por ano, provocando os machos, outros animais e humanos com o seu poderoso Pheromônio[17], gerando grande confusão. Além dessa obra de Ikezawa, existe também o mangá Chiisana Ochakai[18], produzido em 2000, pelo mangaka Nekojuu Jisha, e publicado na Hanamaru Comics, pela editora Hakusensha. A obra conta à vida diária de um casal de gatos, vivendo em eterna lua-de-mel. Os mangakas estão na verdade substituindo alguns personagens humanos por animais.
Da mesma forma que Toba Sojo usou de sapos e coelhos para criticar a sociedade da época, os mangás os utilizam para criar uma empatia mais fácil com os leitores. Entre um madeireiro barbudo e um gatinho indefeso, qual causaria mais simpatia por parte, por exemplo, do público infantil? A resposta é óbvia. O autor Nekojuu Jisha deve ter pensado o mesmo quando escolheu gatos para contar a sua história. Imaginem a cena de um gato gordinho e com o pêlo bem lisinho, todo desengonçado, comendo pipoca num sofá. Caros leitores pensem nessa mesma situação, sendo feita por um homem obeso, de cabelo e barba por fazer, com aparência de marginal ou até de vilão da história. Muitos achariam a primeira seqüência bem kawaii, enquanto a segunda, não seria nada agradável. Nekojuu Jisha fez o uso de gatos pela sua fantasia e romantismo.
Atualmente, muitos mangás usam animais como mascotes dos protagonistas. Podem-se encontrar vários exemplos em: Sailor Moon, de Naoko Takeuchi, existem os três gatos: Luna, Ártemis e Diana; no shonen Yu-Yu Hakusho, o pássaro Puu; no shonen, Matantei Loki Ragnarok, Ecchan; no shonen D.N.Angel, Uizu; e no shonen Tenchi Muyo, Ryokki. Na maioria das vezes, mesmo sendo inofensivas, essas criaturas, no decorrer da trama, acabam ganhando uma importância muito grande para a realização da missão por parte dos heróis e heroínas. Em Rayearth, Mokona é decisivo para a escolha da personagem Hikaru Shidou como o novo pilar de Zephir, que resultou no fim da destruição daquele reino, dando início a sua reconstrução por parte dos seus habitantes.

Através dos mangás, o Japão produziu vários animais e criaturas para cativar o público como o Doraemon, de Hiroshi Fujimoto e Motoo Abiko. Tudo isso ajudou no processo de consolidação do quadrinho japonês como uma grande força de expressão. O surgimento das grandes editoras ajudou no surgimento dos diferentes tipos de mangás, na segmentação por público, por sexo e por faixa etária, enfim, só faltava agora o mangá ser aceito com produto de exportação da cultura japonesa, quebrar barreiras culturais e ser exportado para outros países. Como isso aconteceu? Quais foram os primeiros países aonde o mangá chegou? Que dificuldades o mangá teve nesses países? Bem, as respostas para todas essas perguntas estarão na nossa próxima história.
[1] Monstrinhos e animais bonitinhos.
[2] Animais retratados em ilustrações feitas em pergaminhos.
[3] Pergaminho dos ratos que possuem um livro.
[4] OKUDAIRA, H. Emaki: Picture scrolls. Osaka, Japão: Hoikusha. 1976.
[5] Pergaminhos daqueles que incorporam uma alma.
[6] O conto de Tamamizu.
[7] Bolha d’água.
[8] Conto da Coruja.
[9] As aventuras de Sho e seu esquilo.
[10] Expedição ao Planeta Marte.
[11] As aventuras de Dankichi.
[12] A charmosa e pequena Mike.
[13] Encouraçado Espacial Yamato.
[14] Expresso Galáctico 999.
[15] A Rainha Milênia.
[16] Planeta do País de Algodão.
[17] Hormônio responsável pela atração entre sexos apostos. Seria como se alguém fosse atraído pelo seu cheiro.
[18] Um pequeno chá da tarde.

História do Mangá Parte 4

História do Mangá Parte 4

Por Tiago Bacelar

Com o fim da Era Taisho, inicia-se em 1928, no Japão, a Era Showa[1], com a coroação de Hiroito a imperador. O jovem soberano foi de certa forma um exemplo das tendências que foram discutidas. Os conservadores se opuseram ao seu casamento e como um filho tardava a chegar o imperador recusou-se a arranjar uma concubina, como os seus antecessores tinham feito. Hiroito sucedera ao pai como regente, em 1922, por razões de saúde do progenitor. Por ocasião da sua coroação, em 1928, o jovem imperador prometeu no seu discurso orientar o seu povo em harmonia, aumentar o bem-estar da nação e defender a paz mundial. Talvez se possa dizer que o reinado de Hiroito dividiu-se, segundo Shmizu[2], “em duas partes: uma época de guerra com o ocidente e outra de paz com o seu povo”.
Seu governo começou com a depressão mundial causada pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque e o fortalecimento do fascismo militar no Japão. A partir daí, há uma mudança profunda no estilo dos desenhistas de mangás da época, que passam a criar personagens divertidos, no intuito de trazer um rompimento do estresse gerado pela grande onda de desemprego que assolou o país depois da tragédia ocorrida nos Estados Unidos. Na maneira que Hiroito ia mantendo o país a rédeas curtas, o mercado editorial japonês, principalmente os de mangás iam sofrendo uma verdadeira revolução. Esse processo começa no final da década de 20. Nesse período, os mangakas começaram a criar histórias diversas, que se diversificavam pelo traço, tipo de público que pretendiam atingir e personagens com características únicas para cada estilo criado. Eles foram se desenvolvendo de tais formas e de maneiras tão diferentes, que simultaneamente acabaram formando mangakas próprios e especialistas voltados única e exclusivamente para um determinado tipo de público.
Essa tendência de se voltar para vários gêneros foi diferente, de modo geral, da do Ocidente, onde não existe uma separação tão grande entre os leitores. Em 1939, começa a Segunda Guerra Mundial e o mundo se divide em dois: o Eixo formado pela Itália, Alemanha e Japão e a Aliança liderada pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética, que depois contaria com o apoio do Brasil. Durante esse período turbulento, as criações dos mangakas passaram a se voltar para histórias cheias de mensagens subliminares, no intuito de exercitar o espírito combativo na população. Somente os mangás de guerra tiveram vez, e, os outros estilos foram proibidos pelo governo. Essa postura do imperador Hiroito revoltou muitos artistas, mas como a pressão foi muito forte, eles não puderam fazer nada.
O rigor era tamanho, que os que desobedeciam a essa regra, tinham o registro profissional cassado e sofriam preconceitos por parte da sociedade. Para evitar dores de cabeça depois, Hiroito decidiu recompensar todos que voltassem atrás com programas de reenquadramento ideológico, uma espécie de lavagem cerebral. Muitos desenhistas chegaram a ficar loucos e deixaram de produzir, pois não conseguiam fazer algo que não gostavam. Esse projeto, por incrível que possa parecer, recebeu apoio de todas as classes da sociedade nipônica. A conseqüência disso foram mangás voltados unicamente para convencer a população de que o governo japonês estava certo e que os aliados eram demônios e mereciam ir literalmente para o inferno. As histórias buscavam também convocar o povo para se alistar ao exército. Foi daí que surgiram os homens-bomba, conhecidos como kamikaze. A maneira que a guerra continuava, os mangás iam desaparecendo com a postura de ditador do imperador Hiroito.
Nesse período, o governo contou com um aliado inesperado, vindo do próprio mercado editorial, o Shin Nippon Mangaka Kyokai[3]. Essa espécie de sindicato dos mangakas, criado em 1932, decidiu ajudar Hiroito na tarefa de enquadrar os mangakas à política de produzir histórias de guerra. Nessa mesma época, Ryuichi Yokoyama funda a Shin Mangaha Shudan[4], que veio para auxiliar o imperador Hiroito nessa árdua missão de criar uma atmosfera de incentivo à guerra. A Shin Nippon Mangaka Kyokai foi à única editora que conseguiu publicar uma revista apoiada pessoalmente pelo imperador Hiroito, por ter cedido espaço para artigos escritos por pessoas importantes do governo, cheios de mensagens subliminares, destinadas aos mangakas. Entre os mangás de guerra estavam Kuusyuu, de 1936, e, Manga to Buyuewa, de 1938.
Entretanto, no meio de tanta destruição e autoritarismo, um mangá conseguiu algo impossível para a época, se destacar sobre as histórias usadas como propaganda de guerra. Esse título foi Fuku-chan, que segundo Maruyama[5], “foi uma obra fantástica que mostrou a Hiroito o quanto ele estava enganado nessa postura agressiva contra os mangakas”. Desde o início, o imperador procurou ignorar esse mangá, achando que o mesmo não chegaria muito longe, em virtude de sua história simples, mas cativante. O Shin Nippon Mangaka Kyokai, em sua publicação, chegou até a tecer comentários sobre Fuku-chan. A história abordava as aventuras de Fuku, uma criança do jardim da infância, e do seu avô Arakuma, pelas regiões do Japão. O ponto positivo desse mangá foi dar ânimo à população em um período de guerra. Fuku-chan foi publicado de 1936 a 1973. Inicialmente, ele era uma tira do jornal Asahi Shibum, depois foi lançado no formato de livro. Essa obra de sucesso foi criada pelo mangaka Ryuichi Yokoyama. Apesar de fazer um mangá fora da política de Hiroito, o autor costumava fazer também, via Shin Mangaha Shudan, uma série de ilustrações, que exaltavam o poder bélico japonês e a vitória certa na guerra. Apesar de isso ser estranho, Maruyama[6] afirma, que atitudes como essas eram “normais para a época”.
A questão mais interessante do período da Segunda Guerra Mundial partiu dos Aliados, que se utilizaram de alguns mangás como contrapropaganda. Mas, por que os comics americanos não eram usados para essa função? A razão é simples. Como eram histórias de uma cultura diferente da nipônica, os comics não interessavam em nada os leitores japoneses, pois tinham formato, forma e conteúdo totalmente opostos. Fuku-chan acabou sendo escolhida pelos norte-americanos, pois sua história continha aspectos importantes para convencer a população japonesa de que a guerra não era importante. No Japão, o imperador Hiroito, intrigado com essa idéia dos Aliados, decidiu aumentar o rigor em cima dos mangakas, fazendo com que eles contra-atacassem esse plano inimigo, produzindo histórias com mais apelo em favor da guerra, e, de que caso a população ajudasse, a vitória do Eixo seria certa. Em 1944, Ryuichi, desesperado pela utilização indevida de Fuku-chan pelos Aliados, foi reclamar seus direitos junto às tropas inimigas, que já estavam alojadas em várias áreas do Japão. O comandante, a quem o autor se dirigiu, rejeitou sem pestanejar o seu pedido. Ele alegou que os direitos autorais de qualquer obra intelectual, escrita ou audiovisual eram totalmente inválidos durante a guerra. Yokoyama ainda tentou, via Shin Nippon Mangaka Kyokai, intermediar junto ao imperador, mas acabou não se podendo fazer nada com relação a isso.
Durante o período da Segunda Guerra, os mangás foram usados para incentivar o ódio ao ocidente, aumentar o nacionalismo exacerbado e fascista da população e promover uma verdadeira lavagem cerebral nos desenhistas nipônicos. Em 1945, com o fim da guerra, as editoras nipônicas, que existiam na época, estavam falidas. Praticamente não existiam mais mangás no Japão, em virtude do altíssimo grau de destruição e caos que o país se encontrava. Além disso, por imposição dos Aliados, que ficam no Japão até 1950, são tomadas medidas democratizantes, entre elas a negação do caráter divino do cargo de imperador, que transforma o Governo em uma monarquia constitucional. Economicamente destruída pela guerra, a nação se transforma em potência industrial no período seguinte. Hiroito não segue muitos os rituais da corte. Abandona o uso do quimono, permite a publicação de fotos da família real e assume publicamente sofrer de câncer. Morre em Tóquio, depois de reinar por 63 anos.
É sucedido por seu filho Akihito. Além de levantar o Japão, as pessoas queriam reconstruir suas próprias vidas, vencer a fome e a miséria, cuidar dos órfãos de guerra, dos veteranos mutilados e dos sobreviventes das duas bombas atômicas despejadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki. Com o poder aquisitivo baixo, a busca de entretenimento barato era uma necessidade. Algo muito popular na época ressurgiu, na tentativa de amenizar esses problemas, o qual foi os kami-shibai[7]. Eles são uma forma dos japoneses de contar uma história através de imagens. No século XII, monges budistas usaram os kami-shibai para propósitos de divulgação de seus templos.
Nos anos 20, vendedores de doces começaram a se aproveitar dessa situação. Eles contavam as histórias através de seqüências de imagens, desenhadas em cartolina[8] e fixadas numa estrutura de madeira na parte de trás de suas bicicletas. Durante a exibição, os artistas emitiam alguns sons, no intuito de tornar o ato mais interessante para o público infantil. As séries poderiam ser divididas em atos para que as crianças voltassem para acompanhar a próxima parte da trama, e, obviamente, comprarem mais doces. Com o texto impresso no verso e gigantescas ilustrações coloridas sobre a frente, o formato do cartão de história era muito eficiente para serem apresentados para um grupo maior de crianças. Dependendo da apresentação, o show poderia durar horas. Para não preocupar as mães das crianças, os artistas preparavam um lugar específico para elas ficarem, enquanto a exibição do kami-shibai não terminava. Dentre as obras apresentadas estava Momotaro, a qual contava a história de um garoto que cresce preparado para derrotar os monstros que aterrorizavam sua vila. Em Hanasaka Jii-san, um homem velho tem a habilidade de fazer as plantas florescer, e, em Kaguya-hime, conta à lenda antiga nipônica do surgimento da Princesa da Lua, Kaguya. No início da década de 50, com o início da televisão no Japão, os kami-shibai de rua foram abandonados pelas crianças. Com essa perda de interesse, vários artistas ficaram desempregados. Na época, havia cerca de vinte mil pessoas, que nesse período pós-guerra, se sustentavam com isso. Muitos dos artistas que se dedicaram a essa atividade acabaram se tornando famosos mangakas, dos quais muitos estão no mercado até hoje.
Atualmente, o governo adotou os kami-shibai em todas as instituições de ensino, sejam elas particulares ou públicas, como uma forma a mais de preparar as crianças para uma vida de respeito às tradições e a cultura japonesa. A forma de exibição das ilustrações é ainda a mesma do que era utilizada nas ruas do Japão. Mas, além dos kami-shibai, existe outra questão histórica importante, que ocorreu nesse período do pós-guerra, no intuito de organizar e reestruturar as editoras falidas do Japão, principalmente das regiões de Osaka e Tóquio. Nessa época, em virtude do alto grau de destruição do país, os mangás acabaram se tornando muito caros para o baixo poder aquisitivo da população japonesa. Ao contrário do que muitos pensam, não foi só a área de quadrinhos que enfrentou esse problema. Todas as empresas de entretenimento sabiam que precisavam arrumar um método eficaz de contornar a crise e dar um pouco de alegria àquela geração sofrida do pós-guerra.
A solução para os mangás seria a impressão de algo barato, que alcançasse um número maior de pessoas. Para tornar isso viável era necessário também mudar o papel usado para a impressão. Com a escassez dessa matéria-prima, os editores japoneses decidiram buscar novas alternativas, percebendo que o uso do papel jornal se encaixava perfeitamente nesse projeto. Além de revolucionar o mercado de impressão, o papel jornal fez com que os mangás renascessem das cinzas. Com o aumento da produção de revistas, as editoras se animam em lançar livros de mangás do tipo underground[9], que viriam a ser chamados de akai hon[10]. Segundo Sakurai[11], eles ganharam “um conteúdo suave que buscava fugir dos temas de guerra impostos por Hiroito”. Apesar do sucesso dessas publicações, os desenhistas e roteiristas de mangás recebiam praticamente nada das editoras. Mas, vale-se ressaltar, entretanto, que a política da época de ocupação dos aliados no pós-guerra, permitia certa liberdade aos artistas como nunca haviam tido antes, desde que não atacassem nem os americanos e muito menos os europeus. Esses mangás, publicados em diversas regiões do Japão como Tóquio e Osaka, foram vendidos nas ruas por manga-man[12] e até pelos próprios autores, dependendo da situação em que os mesmos se encontravam financeiramente. Esse tipo de publicação dos mangás deu oportunidade a muitos mangakas como Takashi Miike, Shungiko Ushida e Osamu Tezuka, que nessa época, cursava Medicina na Universidade de Osaka e não era muito conhecido nessa área de quadrinhos. Os akai hon foram muito importantes na decisão de Tezuka de se profissionalizar nessa profissão que o tornaria num dos desenhistas mais famosos do Japão e do mundo. Muito do sucesso desse tipo de publicação no pós-guerra se deve as parcerias com as Livrarias de Empréstimo, que alugavam esses mangás a preços muito baixos para a população sem poder aquisitivo para gastar com algum tipo de diversão. A soma desses acontecimentos foi decisiva para o surgimento de um novo tipo de mangá, cheio de novidades, e, que iria dar início a sua consolidação como um veículo carregado de vários elementos da cultura japonesa. Todo esse processo começou com o projeto audacioso do desenhista japonês Osamu Tezuka.
[1] Luz e Harmonia.
[2] Shimizu, Isamu. Op.cit. 1991. p. 34.
[3] Novo conselho de mangakas do Japão.
[4] Nova geração de mangakas.
[5] MARUYAMA, A. op.cit. p.40.
[6] Idem. Ibdem.p.41.
[7] Teatro de papel.
[8] Nessa época de pouco dinheiro, o papel cartolina era um dos mais baratos.
[9] Revistas marginais.
[10] Livros Vermelhos.
[11] SAKURAI, T.. Tezuka Osamu: jidai to kirimusubu hyogen-sha. Tóquio: ed. Kodansha Gendai Shinsho. 1990.p. 19.
[12] Nome dado aos comerciantes de rua que vendiam mangás. Até hoje, eles podem ser encontrados em muitas regiões do Japão.

História do Mangá Parte 3

História do Mangá Parte 3
Por Tiago Bacelar
Com o fim da Era Tokugawa, o Japão entra na Era Meiji (1868-1911), e, o país é reaberto novamente para os estrangeiros. Com isso, os produtos ocidentais começam a chegar ao Japão e entre eles estão os quadrinhos ingleses e franceses de Charles Wirgman (1835-1891) e George Bigot (1860-1927).
Em 1857, o correspondente do jornal Illustrated London News, Charles Wirgmann, veio ao Japão para apresentar os quadrinhos ocidentais para a população em geral. Em 1862, ele começou a publicação da revista mensal de sátiras, The Japan Punch, que tirava um sarro de alguns modos estranhos do cotidiano japonês. Ela durou até 1887, tendo uma tiragem média de 200 exemplares.
Quando chegou ao Japão em 1882, Bigot casou-se com uma Gueixa e virou professor de Arte Moderna na Escola de Oficiais do Exército. Cinco anos depois, ele lança a revista mensal Tobae, assinando com o nome de Biko, que significa Belo e Bom. A publicação fazia uma sátira dos costumes orientais com a velha pitada do humor europeu. O estilo agressivo de Bigot, ao ridicularizar o governo japonês em suas treze páginas, fez com que ele entrasse em conflito diversas vezes com os principais representantes da elite conservadora e moralista do Japão.
Nesse período, Rakuten Kitazawa (1876-1955), influenciado pelos quadrinhos norte-americanos, criou o primeiro mangá com personagens regulares, que foi a obra Tagesaku to Mokube no Tokyo Kembutsu[1], publicada semanalmente na revista Jiji Manga. Curiosamente, ele conseguiu com esse título, popularizar a profissão de Jornalista no Japão. Kitazawa entrou para o mundo dos mangás com apenas 12 anos, quando começou a estudar pintura, na província de Taikonan, sob a tutela do renomado artista Yuekichi Fukuzawa. Ele aprendeu que era importante satirizar tanto a sociedade quanto o governo para se tornar um grande desenhista. Na seqüência, Kitazawa foi influenciado pelos desenhos ocidentais, ao receber aulas do australiano Franck Nankivel. Após isso, o seu trabalho foi reconhecido pelos europeus, especialmente franceses e espanhóis, segundo Naka[2], como “o primeiro desenhista japonês famoso internacionalmente”. A Era Meiji chega ao fim e o Japão entra na Era Taisho (1912-1925). Nessa altura, o mercado editorial de mangás apesar de recente já estava com características próprias. Dessa forma, o universo dos mangás, publicados em jornais e revistas nipônicas, passou a se centralizar em torno dos adultos. Os mangakas passaram a fazer revistas, cheias de tramas complexas, triângulos amorosos e assassinatos misteriosos. Como a maioria desses desenhistas eram funcionários de grandes veículos de comunicação, a mídia passou a usar esses temas como linha editorial para a produção de reportagens especiais. Elas poderiam vir, por exemplo, depois de uma longa investigação, com o desvendamento de algum escândalo ou assassinato importante, que tenha ocorrido em algum lugar do Japão. A repercussão junto ao público japonês foi grande, gerando uma aceitação importante para a fase que vivia o mangá.
Em 1912, depois de se formar na Escola de Belas Arte de Tóquio, o artista Ippei Okamoto começa a trabalha para o jornal Asahi Shimbun, onde lança o mangá Nakimushi Dera no Yawa[3]. Em 1921, ele vai à Nova Iorque, nos Estados Unidos, e descobre a revista Sunday Funnies. Impressionado com as diferenças culturais, Okamoto traz ao Japão alguns comics americanos como Mutt & Jeff para publicá-los na revista semanal Asahi Graph, em novembro de 1923. Nesse mesmo ano, o Japão sofre um grande terremoto, que vitimou cerca de 100 mil pessoas. Para alegrar a população, a mangaka Yutaka Aso publica, em 1924, Nonki na Otou-san[4]. O protagonista Nonto consegue superar os problemas da vida diária, com muita determinação, confiança e alegria.
Em 1914, na revista Shonen-kurabu, da editora Kodansha, estreou o mangá infantil Sho-chan no Boken[5]. A trama contava a história de um garoto chamado Sho e seu companheiro, o esquilo Shino, que acabam entrando em uma longa jornada através de mundos fantásticos, onde devia manter a paz, proteger a natureza e os animais. Tudo isso acontece depois que os dois se perdem em pleno deserto.
Esse mangá foi desenhado pelo mangaka Katsuichi Kabashima, conhecido como Tofujin. O roteiro ficou nas mãos do experiente jornalista Shosei Oda. Como um traço simples, Katsuichi conseguiu ganhar apoio da crítica e sucesso junto ao público, pois conseguiu fazer uma combinação perfeita da fantasia com o humor. Essa repercussão das aventuras de Sho pode ser vista até hoje no Japão, como por exemplo, o gorro de lã branco utilizado pelo personagem é ainda, segundo Luyten[6], “conhecido pelo termo Sho-chan-Bo[7]”. Curiosamente, Sho-chan ganhou em 1924 uma versão animada de oito minutos de duração, cujo autor é desconhecido.
Recentemente, essa pérola foi exibida na Filmoteca de Valência na Espanha, durante o Festival dos Pioneiros da Animação Japonesa. Com o sucesso de Sho-chan, os japoneses descobriram que Katsuichi aprendeu a desenhar, copiando ilustrações da revista National Geographic. Juntamente com Katsuichi, o mangaka Shigeo Miyao (1902-1983) foi um dos primeiros especialistas no Japão em mangás voltados para o público infantil. Em 1922, entra para esse mundo, com Manga Taro, que inicialmente foi publicado em tiras, pelo jornal Maiyu Shibun.
Em 1924, criou Dango Kushisuke Manyuki[8]. Essa obra girava em torno de um samurai, que usava sua espada como um espetinho de Mochi, um doce muito popular no Japão, feito com arroz no formato redondo. Em seu interior pode-se encontrar o Kinako[9], o Manju[10], o molho de soja e algumas algas marinhas. Esse título tornou-se um dos primeiros fenômenos de vendas no Japão, dando início a um processo de consolidação desses primeiros passos que o mangá estava dando no mercado editorial. Em 1927, segundo Schodt[11], “Manga Taro foi transportado para o formato de livro”. Depois dessa fase, Shigeo Miyao passou a se dedicar inteiramente ao desenho de ilustrações de paisagens do Japão e de seus habitantes no velho estilo do ukiyo-ê. Além disso, o artista escreveu centenas de livros sobre os mais diversos temas da cultura japonesa como os festivais e os tipos de artes que marcaram época.
No final dos anos 20, com o sucesso das obras de Shigeo Miyao, as editoras japonesas começam a investir em mangás para crianças, publicando-os em tiras de jornais e em revistas no formato de livro. Dessa forma, tivemos publicações adultas e infantis, criadas por mangakas especialistas na produção desses tipos de mangás. Essa época foi marcada, segundo Maruyama[12], “por uma grande explosão de revistas desenhadas por artistas japoneses. Esse processo tornou mínimas as chances de sucesso de qualquer publicação estrangeira no mercado editorial do Japão”. Um dos motivos para isso foi a notável diferença que foi sendo criada entre os mangás e os quadrinhos do ocidente, onde os mangakas desenvolveram um estilo cinematográfico, onde a imagem valia mais do que as palavras. Entretanto, como em toda regra existe uma exceção, nesse período foi lançado Speed Taro, de Sako Shishido. Depois de estudar arte por nove anos nos Estados Unidos, o artista passou a adotar nesse título várias técnicas dos comics. Além disso, o roteiro, cheio de aventuras e conspirações criminais, se parece muito com o de as Aventuras de Tintin. A última edição de Speed Taro saiu em 1930.
[1] Tagesaku e Mokube fazem Turismo em Tóquio.
[2] NAKAO, A. Tezuka Osamu, Connecting the World with Manga and Animated Cartoons. Tóquio, Japão: Kodansha Ltda. 1991.p. 87.
[3] Lendas do Tempo de Nakimushi.
[4] Papai é legal.
[5] As aventuras do pequeno Sho.
[6] LUYTEN, S.M.B. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses 2. ed. São Paulo: Hedra, 2000.p.111
[7] O gorro de Sho-chan.
[8] As Aventuras de Dango Kushisuke.
[9] Farinha feita com feijão e soja.
[10] Pasta Vermelha de doce de feijão.
[11] SCHODT, F., Manga! Manga! : The World of Japanese Comics,Tóquio, Kodansha International, 1993.p. 50-51.
[12]MARUYAMA, A.. Manga no kanzume: Tezuka Osamu to Tokiwa no nakamatachi. Tóquio: ed. Horupu Shuppan. 1993.p.32

História do Mangá Parte 2

História do Mangá Parte 2
Por Tiago Bacelar
A história do mangá começa com os editores, considerados, no final do século XVII, pelo governo Tokugawa, como pertencentes da classe mais baixa da sociedade. Em virtude disso, os editores, que faziam parte da classe dos artesões, e os mercadores, por serem em maior número em cidades como Kyoto, Osaka e Edo, passaram a serem conhecidos como chonin – pessoas da cidade. Em 1702 houve o primeiro indício de descontentamento como os Tokugawa, com a famosa vingança dos 47 ronins, quando samurais se rebelaram. Apesar dos períodos de turbulência, a Era Ieyasu trouxe aspectos importantes para a cultura como a primeira aparição do Kabuki, em 1600, quando o mesmo lutava na batalha de Sekigahara, e o nascimento de ningyo joruri[1], em Kyoto e Osaka, por volta de 1630. O progresso da cultura nativa japonesa, durante a dinastia Tokugawa, foi de grande auxílio para o nascimento de grandes autores como Basho Matsuo (1644–1694), que foi o maior poeta de haiku[2], e Monzaemon Chikamatsu (1653 – 1724), considerado o "Shakespeare japonês[3]” por ter começado escrevendo para o teatro de Marionetes. O rígido controle sobre a economia, por parte dos Tokugawa, não impediu o crescimento das grandes cidades e o enraizamento de uma série de normas e tradições que ditariam a cultura nipônica para as próximas gerações. Porém, essas boas notícias não impediram que viesse, ao conhecimento da população, uma série de falhas do shogun no quesito das relações do Japão com o exterior.
Estava evidente que o isolamento proporcionado por Ieyasu tinha gerado uma enorme cratera entre o progresso japonês e o mundial. Dessa forma, os contatos com os ingleses e russos foram reativados somente em 1950. Três anos depois, o comodoro americano Matthew Perry entrou em Tóquio com uma esquadra de quatro navios, buscando tentar persuadir as autoridades japonesas a firmar o Tratado de Kanagawa, pondo um fim ao isolacionismo, através da abertura dos portos. Em 1856, graças a Perry, o diplomata norte-americano Townsend Harris foi ao Japão para assinar o Tratado de Comércio e Navegação. Na mesma época, o shogun assinou tratados semelhantes com a Holanda e a Rússia. Em 1861, os Tokugawa fecharam questão com a França e com a Inglaterra. Vale-se ressaltar que essa atitude do governo de abrir os portos aumentou a pressão de várias correntes sociais e políticas, que temiam o fim da estrutura feudal. A guerra civil inevitável se prolongou por cerca de uma década, até que o sistema feudal do shogunato Tokugawa desmoronou em 1867. Os grandes fenômenos culturais dessa época foram os teatros populares do Kabuki e do Bunraku. Eles trouxeram como conseqüência a produção de ilustrações com características bem particulares, que retratavam com louvor o modo de vida político, econômico e cultural dos japoneses. Por volta de 1860, essas gravuras já empregavam cerca de seis mil pessoas.
Feitas e esculpidas em madeira, esses tipos de artes foram chamados de ukiyo-ê. Elas tinham como principal característica fazer uma crítica aos lordes feudais, responsabilizando-os pelo estado que as classes mais pobres se encontravam. Vale-se ressaltar, que elas não eram diretas, ou seja, os artistas usavam símbolos para fazer ataques indiretos cheios de ironia e ressentimento. As ilustrações tentavam atingir o mais profundo dos sentimentos humanos, sem se preocuparem muito com a anatomia dos personagens retratados. Dessa forma, os ukiyo-ê não poderiam em hipótese nenhuma ser enquadrados na categoria de caricatura, pois a semelhança com a pessoa satirizada é fundamental. Elas foram utilizadas como forma de arte no período de 1600 a 1867.
O ukiyo-ê tinha na sua essência uma relação muito forte com os mangás, pois eram segundo Inoue[4]: “recheadas da realidade nua e crua nipônica, do modo de vida desse povo e entretinham como um meio de aliviar a tensão e o estresse do dia a dia. Essas gravuras eram verdadeiras obras de arte”. Um exemplo dessa força do ukiyo-ê pode ser visto com o nascimento do artista Kuniyoshi Utagawa em 15 de novembro de 1797. Aos 18 anos, em 1815, Utagawa desenvolve o seu primeiro trabalho, um livro de ilustrações. Em 1829, torna-se um mestre do ukiyo-ê com a série Suikoden Nishikie[5]. Kuniyoshi acabou se firmando como especialista em imagens de guerreiros samurais. As coisas foram andando lentamente para Utagawa depois dessa época e outras obras foram criadas. Toto Meisho é provavelmente seu trabalho mais conhecido, destacando-se também Soma no Furudairi, Myoukai Kou Goju Sanbiki e Miyamoto Musashi no Kujirataiji. Essa última retratava o lendário samurai Miyamoto Musashi e o seu estilo Kujirataiji. Sua forma de desenhar parecia muito com os quadrinhos e foi de certa maneira um prelúdio para o surgimento do mangá. Utagawa deixa, ao falecer, em cinco de março de 1861, um discípulo, Gyodai Kawanable (1831-1889), o qual viria a se tornar um desenhista muito influente. Tanto Utagawa como Gyodai foram importantes para a consolidação do ukiyo-ê como forma de retratar a época. Dessa forma, acabaram surgindo vários novos artistas, os quais a maneira que iam evoluindo, o mangá começava a nascer. Começaram, então, a partir desse momento histórico, o qual o Japão vivia os indícios do surgimento de um tipo de arte que iria mudar a história de todo um povo. Entre os artistas do ukiyo-ê, estava Katsushita Hokusai (1760-1849). Ele foi à primeira pessoa a cunhar a palavra mangá. Apesar de existirem algumas evidências de que ela foi usada antes, entre 1761 e 1816, pelo renomado autor Santo Kyoden, o qual teria utilizado esse termo para denominar os retratos falados que fazia das pessoas que compravam tabaco na sua loja. Até hoje, essa teoria não é aceita pela total falta de provas. Entre 1814 e 1849, Hokusai criou uma série de 15 volumes chamada por ele de Hokusai Manga.
Eles são um espelho daquele tempo e do próprio gênio do autor, sabendo captar e ilustrar a vida como um todo. Foi um marco para o surgimento do mangá moderno, mas parecia mais com uma ilustração do que com uma história em quadrinhos. A palavra mangá não foi usada para descrever essa forma de arte até os séculos XVII e XVIII. Katsushita Hokusai era uma pessoa que tinha uma filosofia muito diferente sobre a arte e os portifólios feitos em blocos de madeira, que eram típicos para a época. Ele era um homem com uma natureza um tanto rebelde.
Hokusai nasceu na província de Honjo, ao leste de Edo, em 1760, e, começou a se interessar por desenho desde os cinco anos. Sua entrada para o mundo do ukiyo-ê ocorreu quando tinha apenas 16 anos. Em 1789, Hokusai ganhou fama ao publicar trabalhos sobre os atores do Kabuki. Passado essa fase, ele começou a fazer ilustrações mais adultas, abordando temas como a pornografia, o erotismo, o drama e o romance.
Nesse período, Hokusai buscava chocar a sociedade e o próprio governo com a sua ousadia. Devido a isso, seus trabalhos acabaram sendo censurados várias vezes. Nos anos 20, Hokusai pintou as séries sobre as Pontes, Shokoku Meikyo Kiran e as Cascatas, Shokoku Takimeguri. Em 1934, ele produziu as 36 Visões do Monte Fuji, Fugaku Sanjurakkei. Nesse trabalho, o artista mostrou vários caminhos de se ver esse famoso ponto turístico do Japão. Com essa série de quadros, Hokusai tornou-se uma referência para os amantes e também iniciantes da arte do ukiyo-ê. Hokusai era conhecido por responder aos seus professores e por desafiar continuamente seus métodos de fazer coisas. Poderia eventualmente fazer a sua própria arte, e isso foi pensado através dos quase 30 mil objetos artísticos comprados por ele. Alguns eram agrupados em coleções e livros, e, que o fez sobreviver no meio. Hokusai fez muitos objetos diferentes, influenciados pelas artes e filosofias artísticas francesas e holandesas de grandes nomes como Degas, Van Gogh, Monet e Toulouse-Lautrec. Mas, vale-se ressaltar, que nenhum desses trabalhos, se pareceu com o seu estilo original que tinha chamado de mangá. Para Hokusai[6], “o mangá não era uma arte de desenhar personagens em uma história e nem para prestar atenção a detalhes minuciosos”.
Hokusai planejou criar um novo tipo de entretenimento ou uma parte significativa da arte de ilustrar o cotidiano. Mais tarde, o uso de Hokusai do termo mangá seria denominado para o seu método de desenhar uma imagem de acordo com o caminho que o seu pincel deslizou através da página em sentido aleatório. Os seus traços davam à impressão de que giravam para fora do quadro. A maior parte das ilustrações feitas por Hokusai era de retratos das paisagens que ele presenciou nas suas andanças pelo país. Os especialistas japoneses reconheceram os detalhes da natureza da arte que Hokusai queria extrair, e, que era algo contrário a toda arte conhecida até então. Artistas conceituados na época tentaram extrair para os seus trabalhos toda a essência da arte de Hokusai. Essa proposta livre de Hokusai, embora ele inicialmente não pretendesse que fosse ser assim, pode ter sido a base para a diversidade dos artistas de mangá nas décadas seguintes. Eles passaram a ver que não deveria existir um formato pré-determinado para se criar uma imagem, e, que eles podiam inovar desenhando muitos tipos diferentes de personagens e de histórias. Toda essa abertura fez, com que, desenhistas com a visão mais aberta aceitassem mais esses novos estilos de desenhar e que eram muito mais do que ele queria descrever nas suas histórias. E embora Hokusai tenha feito uma pequena descoberta com este estilo de arte (um de muitos tipos que ele usou), não imaginava que no século XX, o mangá, termo criado por ele, viria a se tornar uma das mídias mais importantes do Japão e do mundo.
[1] Teatro de Marionetes
[2] Poema de 17 sílabas.
[3] Shimizu, Isamu. History of Manga, Tóquio, Japão: Iwanami Shoten, Publishers. 1991. p. 27.
[4] INOUE, M. Manga no yomikata. Tóquio: ed. Takarajimasha. 1995.p.32
[5] Os 108 heróis mais populares de Suikoden.
[6] HOKUSAI, K. Fugaku Sanju Rokkei, Edo: Japão, 1848.

História do Mangá Parte 1

História do Mangá Parte 1
Por Tiago Bacelar
Sabe-se que o mangá está ligado à cultura nipônica. Para entender como tudo começou, é necessário voltar no tempo. Os historiadores dividem a história do Japão em várias Eras, sendo cada uma delas governada por uma dinastia diferente. No período Jomon (10.000 a.C. - 300 a.C.), houve à chegada do homem ao arquipélago japonês. As culturas paleolíticas do Japão pré-histórico deram lugar a uma cultura neolítica denominada de Jomon. Ela era caracterizada pelas habilidades tremendas que os homens tinham para a confecção de cerâmicas, cheias de detalhes, modeladas com as mãos e endurecidas a temperaturas baixas. Recentemente, os arqueólogos encontraram centenas de vestígios delas por todo o país.
Nessa época, existiu também um domínio de atividades como a caça e a pesca, contribuindo para a existência de uma sociedade com poucas divisões sociais. Na seqüência, no período Yayoi (300 a.C. - 300 d.C.), surgiu uma nova cultura, que começou na região de Kyushu, e, foi se estendendo lentamente por todo o país. Nela surgiram as primeiras técnicas para o cultivo do arroz irrigado e a fabricação de tecidos. As cerâmicas passaram a ser produzidas em altas temperaturas e os objetos foram confeccionados em ferro e bronze. O período Kofun (300-593) foi marcado pelo estabelecimento de uma forte autoridade política na região de Yamato, uma província no centro de Honshu, que cedeu seu nome a moradia oficial do imperador e depois a todo o antigo Japão.
Nessa época começou a aparecer às primeiras construções de túmulos gigantescos, voltados para o enterro das dinastias da elite conservadora japonesa. Esses lugares foram denominados de Kofun, em virtude da magnitude das obras. Em meio a todo esse contexto, o Budismo se instaura no Japão como uma religião. Com a chegada da regência do primeiro Shotoku e da promulgação da Constituição dos Dezessete Artigos, no início do período Asuka (593-710), o poder do imperador se fortalece ainda mais. Através dessas mudanças, o governo japonês queria implantar uma série de profundas reformas na política, no intuito de obter a centralização do poder e formar a classe da aristocracia japonesa. Em virtude disso, os oficiais locais oriundos de antigas famílias poderosas perderam todos os seus privilégios, fazendo com que no início do período Nara (710-794), um novo Estado fosse formado, totalmente inspirado nas bases da Dinastia Tang na China. Para tornar isso possível, o imperador mandou erguer, em 713, uma série de obras faraônicas como a cidade de Nara e o Grande Buda, na região de Todaiji.
Outro fato importante para a sociedade daquela geração foi à compilação da antológica série de poemas: Man'yoshu. Na Era Heian (794-1192), o governo decidiu transferir a capital para Heian, adaptando a política às realidades japonesas da época, cuja tentativa acabou fortalecendo a família Fujiwara e resultou no surgimento dos samurais. Esse período foi marcado também pelas guerras civis de Hogen, em 1156, e de Heiji, em 1159. Na área da literatura japonesa, a Era Heian proporcionou o desenvolvimento de livros de contos, como foi o caso de Genji Monogatari. Houve também a criação da letra Kana, a partir do alfabeto Kanji. No período Kamakura (1192-1333), o jovem Minamoto Yoritomo dá inicio ao shogunato da família Kamakura, que acabaria sendo influenciado pelo poderoso clã conservador Houjo.
Durante esse governo, o Japão quase foi invadido pelos mongóis. Em 1333, o imperador Godaigo derrota os Kamakura e traz de volta o poder concentrado nas mãos do Imperador. No período Muromachi (1333-1573), os Muromachi assumem o comando do Japão, e transferem a capital para a região de Kyoto. Ashikaga Takauji torna-se imperador. Em 1467, começa a famosa guerra Onin, onde todas as regiões do Japão entraram num conflito violento, que resultou na morte de milhares de civis e na introdução das armas de fogo. Em 1549, os portugueses, que haviam chegado às ilhas nipônicas seis anos antes, decidem introduzir o catolicismo na região, através do jesuíta Francisco Xavier. Esse fato marcante gerou o surgimento da cultura Higarashi Yama, que passou a pregar a meditação profunda do espírito e da mente. Na seqüência, foram erguidos os jardins de pedra e areia de Ryoanji e o templo de ouro de Kinkakuji, no intuito de fortalecer os vínculos dessa nova religião com a sociedade japonesa.
O período Azuchi Momoyama (1573-1603) começa com a destruição da dinastia dos Muromachi, sob a liderança do comandante Oda Nobunaga. Com o passar de 13 anos depois do ocorrido, Toyotomi Hideyoshi assume como imperador para tentar unificar o Japão, centralizar o poder em suas mãos e promover o desenvolvimento da cidade de Osaka. Em 1589, Hideyoshi põe em prática suas verdadeiras intenções ao proibir e perseguir o catolicismo, confiscar todas as armas, aumentar os impostos e invadir a Coréia, no intuito de transformá-la em colônia. Mesmo com toda essa turbulência interna e externa, o Japão instaurou a tradicional Cerimônia do Chá, chamada de Sado. Ao sair vitorioso na famosa batalha de Sekigahara, o clã Tokugawa dá início ao período Tokugawa (1602-1867), com a posse de seu primeiro imperador. Dessa forma, Tokugawa Ieyasu assumiu, em 1603, o governo como Shogun[1], estabelecendo, assim, a capital em Edo[2], e dando início a unificação do Japão. Essa figura histórica foi decisiva para a criação de um modelo, capaz de moldar para as décadas seguintes como seria ditada a vida dos japoneses, principalmente num contexto social, beneficiando várias instituições de cunho político e econômico. Os sucessivos Shoguns, designados pela Corte Imperial da Família Tokugawa, dominaram toda a nação por 265 anos, só sendo interrompidos por uma gigantesca guerra civil. O contínuo conflito, que tinha devastado várias regiões do país, especialmente a de Kyoto, também fez emergir um novo sistema de governo, que era ao mesmo tempo criativo e atrativo. Sob o comando de Tokugawa Ieyasu, os lordes feudais governavam seus respectivos domínios com poder absoluto sobre o povo e a propriedade. Ieyasu institui, em 1635, o Sankin Kotai, uma obrigação para os daimyo[3] de residirem em Edo, como verdadeiros hóspedes. Esse sistema já tinha sido implantado antes, no período Sengoku, de 1467 a 1567.
A essência do Sankin Kotai foi o de obrigar os lordes feudais a revezarem, em certos períodos, suas residências, que eram ou os seus próprios castelos ou o do Shogun da dinastia Tokugawa. Quando os lordes não estavam em Edo, eles eram obrigados a enviar membros da sua família como substitutos. Isso foi, basicamente, um sistema de hospedagem, aonde sempre deveria ter alguém morando junto ao imperador supremo do Japão. O Sankin Kotai envolvia muito mais do que uma submissão física. Isso, porque o daimyo era considerado uma pessoa de status na sociedade e tinha que manter uma mansão do mesmo nível dos castelos em Edo. Todas essas exigências do Shogun levaram os lordes feudais a perderem sua liberdade de agir sobre o dinheiro que possuíam.
Os daimyo queriam continuar exercendo um certo e apropriado grau de destaque e luxúria na sociedade. Esse declínio em termos financeiros foi gerado por enormes quantias de dinheiro gastas pelos lordes feudais para manter o grau de esplendor de suas mansões e castelos. Cavalos, comidas, transporte e entretenimento foram providenciados e arranjados para manter esse glamour. Além disso, sempre que havia uma mudança para Edo, vários servos e guardas[4] eram contratados para dar proteção e satisfazer as luxúrias dos lordes feudais. Normalmente, esse número chegava a cerca de 300 pessoas. Durante a vigência da Era Tokugawa, o total de perdas dos daimyo foi de 25% de todas as propriedades, que os mesmos possuíam antes da dinastia Tokugawa assumir o poder. O tempo desse revezamento castelo Edo – castelo lorde feudal era alternado em períodos de seis meses a um ano. O sistema de controle promovido por Ieyasu no país inteiro, levou o Japão da desunião do período Sengoku para o nacionalismo exacerbado dos séculos XIX e XX. Isso também causou um processo de crescimento acelerado do comércio nacional e do sistema financeiro porque os daimyo tiveram que vender produtos locais em mercados nacionais para arrecadar dinheiro suficiente para pagar a sua viagem para Edo. Essa região e Osaka tornaram-se pontos centrais do comércio nacional, que uniu a nação em termos econômicos até mesmo nos momentos em que o sistema político remanescente continuava descentralizado.
A implantação desse sistema também ajudou a trazer novas pessoas e idéias para o desenvolvimento de Edo e principalmente dos grandes centros urbanos do Japão como a região de Kyoto. Isso gerou o surgimento de uma fortalecida e unificada cultura nipônica cheia de tradições e regras, as quais muitas permanecem até hoje e que foram fundamentais para o surgimento do mangá décadas mais tarde. Quando o Shogunato da dinastia Tokugawa começou a perder poder, o Sankin Kotai foi abolido em 1862. Seis meses depois do seu fim, aproximadamente metade da população de Edo deixou a região para retornar para as suas casas e propriedades.
Os daimyo, ao deixarem Edo, desmantelaram suas mansões e levaram tudo o que tinha dentro delas com eles no caminho de volta para onde viviam antes. O século XVI chegou ao fim, com o Japão, sob o comando de três fortes lideranças, Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu. Eles guiaram o Japão para um sistema feudal rigoroso de governo, sociedade e economia. Nesse meio tempo, quando o Cristianismo[5] começou a avançar no Japão, Ieyasu percebeu que isso poderia estragar os seus planos de controlar a questão do porte de armas de fogo junto à população, e continuou com a perseguição aos adeptos dessa religião.
Em 1613, o shogun determinou a expulsão dos pregadores e a destruição de todas as igrejas cristãs. Ieyasu queria que os cristãos fossem convertidos ao budismo. Sete anos depois, a ação se repetiu, e muitos foram presos e deportados. No mesmo ano, os japoneses deram início às primeiras transações comerciais com a Coréia, Camboja e Tailândia. Os cristãos só deixaram de ser perseguidos, em 1857, quase no fim da Era Tokugawa. Em 1639, Ieyasu chocou os comerciantes nipônicos ao anunciar o fechamento das portas do país com o exterior, objetivando manter o Japão subjugado as suas regras. Entretanto, houve algumas brechas, através de negócios com alguns dos comerciantes holandeses, residentes da pequena ilha Dejima, na baía de Nagasaki, com chineses da região de Nagasaki e com enviados reais da dinastia Lee, da Coréia.
Por incrível que possa parecer, essas pessoas foram, por cerca de dois séculos, os únicos contatos entre o Japão e o mundo exterior. Sabiamente, os médicos japoneses conseguiram obter, através dessas pequenas transações, informações preciosas sobre a medicina ocidental, assim como, outros profissionais também se aproveitaram dessa situação para se aperfeiçoarem. No período Tokugawa, a população era dividida em quatro classes sociais: samurais, camponeses, artesãos e comerciantes. Como ocorre em toda sociedade, a desigualdade tornava a vida da maioria do povo muito limitada. Apesar de estarem numa posição elevada na pirâmide social, os camponeses não tinham permissão de deixar suas terras e pesados impostos recaíam sobre eles.
[1] Líder e Comandante Supremo do País.
[2] Atual Tóquio
[3] Senhores feudais autônomos.
[4] Esses guardas eram na sua maioria formados por samurais, em virtude de suas rígidas regras de proteger com a própria vida o seu senhor.
[5] No início deste século, existia cerca de 700 mil cristãos no país.