domingo, 28 de outubro de 2007

História do Mangá Parte 4

História do Mangá Parte 4

Por Tiago Bacelar

Com o fim da Era Taisho, inicia-se em 1928, no Japão, a Era Showa[1], com a coroação de Hiroito a imperador. O jovem soberano foi de certa forma um exemplo das tendências que foram discutidas. Os conservadores se opuseram ao seu casamento e como um filho tardava a chegar o imperador recusou-se a arranjar uma concubina, como os seus antecessores tinham feito. Hiroito sucedera ao pai como regente, em 1922, por razões de saúde do progenitor. Por ocasião da sua coroação, em 1928, o jovem imperador prometeu no seu discurso orientar o seu povo em harmonia, aumentar o bem-estar da nação e defender a paz mundial. Talvez se possa dizer que o reinado de Hiroito dividiu-se, segundo Shmizu[2], “em duas partes: uma época de guerra com o ocidente e outra de paz com o seu povo”.
Seu governo começou com a depressão mundial causada pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque e o fortalecimento do fascismo militar no Japão. A partir daí, há uma mudança profunda no estilo dos desenhistas de mangás da época, que passam a criar personagens divertidos, no intuito de trazer um rompimento do estresse gerado pela grande onda de desemprego que assolou o país depois da tragédia ocorrida nos Estados Unidos. Na maneira que Hiroito ia mantendo o país a rédeas curtas, o mercado editorial japonês, principalmente os de mangás iam sofrendo uma verdadeira revolução. Esse processo começa no final da década de 20. Nesse período, os mangakas começaram a criar histórias diversas, que se diversificavam pelo traço, tipo de público que pretendiam atingir e personagens com características únicas para cada estilo criado. Eles foram se desenvolvendo de tais formas e de maneiras tão diferentes, que simultaneamente acabaram formando mangakas próprios e especialistas voltados única e exclusivamente para um determinado tipo de público.
Essa tendência de se voltar para vários gêneros foi diferente, de modo geral, da do Ocidente, onde não existe uma separação tão grande entre os leitores. Em 1939, começa a Segunda Guerra Mundial e o mundo se divide em dois: o Eixo formado pela Itália, Alemanha e Japão e a Aliança liderada pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética, que depois contaria com o apoio do Brasil. Durante esse período turbulento, as criações dos mangakas passaram a se voltar para histórias cheias de mensagens subliminares, no intuito de exercitar o espírito combativo na população. Somente os mangás de guerra tiveram vez, e, os outros estilos foram proibidos pelo governo. Essa postura do imperador Hiroito revoltou muitos artistas, mas como a pressão foi muito forte, eles não puderam fazer nada.
O rigor era tamanho, que os que desobedeciam a essa regra, tinham o registro profissional cassado e sofriam preconceitos por parte da sociedade. Para evitar dores de cabeça depois, Hiroito decidiu recompensar todos que voltassem atrás com programas de reenquadramento ideológico, uma espécie de lavagem cerebral. Muitos desenhistas chegaram a ficar loucos e deixaram de produzir, pois não conseguiam fazer algo que não gostavam. Esse projeto, por incrível que possa parecer, recebeu apoio de todas as classes da sociedade nipônica. A conseqüência disso foram mangás voltados unicamente para convencer a população de que o governo japonês estava certo e que os aliados eram demônios e mereciam ir literalmente para o inferno. As histórias buscavam também convocar o povo para se alistar ao exército. Foi daí que surgiram os homens-bomba, conhecidos como kamikaze. A maneira que a guerra continuava, os mangás iam desaparecendo com a postura de ditador do imperador Hiroito.
Nesse período, o governo contou com um aliado inesperado, vindo do próprio mercado editorial, o Shin Nippon Mangaka Kyokai[3]. Essa espécie de sindicato dos mangakas, criado em 1932, decidiu ajudar Hiroito na tarefa de enquadrar os mangakas à política de produzir histórias de guerra. Nessa mesma época, Ryuichi Yokoyama funda a Shin Mangaha Shudan[4], que veio para auxiliar o imperador Hiroito nessa árdua missão de criar uma atmosfera de incentivo à guerra. A Shin Nippon Mangaka Kyokai foi à única editora que conseguiu publicar uma revista apoiada pessoalmente pelo imperador Hiroito, por ter cedido espaço para artigos escritos por pessoas importantes do governo, cheios de mensagens subliminares, destinadas aos mangakas. Entre os mangás de guerra estavam Kuusyuu, de 1936, e, Manga to Buyuewa, de 1938.
Entretanto, no meio de tanta destruição e autoritarismo, um mangá conseguiu algo impossível para a época, se destacar sobre as histórias usadas como propaganda de guerra. Esse título foi Fuku-chan, que segundo Maruyama[5], “foi uma obra fantástica que mostrou a Hiroito o quanto ele estava enganado nessa postura agressiva contra os mangakas”. Desde o início, o imperador procurou ignorar esse mangá, achando que o mesmo não chegaria muito longe, em virtude de sua história simples, mas cativante. O Shin Nippon Mangaka Kyokai, em sua publicação, chegou até a tecer comentários sobre Fuku-chan. A história abordava as aventuras de Fuku, uma criança do jardim da infância, e do seu avô Arakuma, pelas regiões do Japão. O ponto positivo desse mangá foi dar ânimo à população em um período de guerra. Fuku-chan foi publicado de 1936 a 1973. Inicialmente, ele era uma tira do jornal Asahi Shibum, depois foi lançado no formato de livro. Essa obra de sucesso foi criada pelo mangaka Ryuichi Yokoyama. Apesar de fazer um mangá fora da política de Hiroito, o autor costumava fazer também, via Shin Mangaha Shudan, uma série de ilustrações, que exaltavam o poder bélico japonês e a vitória certa na guerra. Apesar de isso ser estranho, Maruyama[6] afirma, que atitudes como essas eram “normais para a época”.
A questão mais interessante do período da Segunda Guerra Mundial partiu dos Aliados, que se utilizaram de alguns mangás como contrapropaganda. Mas, por que os comics americanos não eram usados para essa função? A razão é simples. Como eram histórias de uma cultura diferente da nipônica, os comics não interessavam em nada os leitores japoneses, pois tinham formato, forma e conteúdo totalmente opostos. Fuku-chan acabou sendo escolhida pelos norte-americanos, pois sua história continha aspectos importantes para convencer a população japonesa de que a guerra não era importante. No Japão, o imperador Hiroito, intrigado com essa idéia dos Aliados, decidiu aumentar o rigor em cima dos mangakas, fazendo com que eles contra-atacassem esse plano inimigo, produzindo histórias com mais apelo em favor da guerra, e, de que caso a população ajudasse, a vitória do Eixo seria certa. Em 1944, Ryuichi, desesperado pela utilização indevida de Fuku-chan pelos Aliados, foi reclamar seus direitos junto às tropas inimigas, que já estavam alojadas em várias áreas do Japão. O comandante, a quem o autor se dirigiu, rejeitou sem pestanejar o seu pedido. Ele alegou que os direitos autorais de qualquer obra intelectual, escrita ou audiovisual eram totalmente inválidos durante a guerra. Yokoyama ainda tentou, via Shin Nippon Mangaka Kyokai, intermediar junto ao imperador, mas acabou não se podendo fazer nada com relação a isso.
Durante o período da Segunda Guerra, os mangás foram usados para incentivar o ódio ao ocidente, aumentar o nacionalismo exacerbado e fascista da população e promover uma verdadeira lavagem cerebral nos desenhistas nipônicos. Em 1945, com o fim da guerra, as editoras nipônicas, que existiam na época, estavam falidas. Praticamente não existiam mais mangás no Japão, em virtude do altíssimo grau de destruição e caos que o país se encontrava. Além disso, por imposição dos Aliados, que ficam no Japão até 1950, são tomadas medidas democratizantes, entre elas a negação do caráter divino do cargo de imperador, que transforma o Governo em uma monarquia constitucional. Economicamente destruída pela guerra, a nação se transforma em potência industrial no período seguinte. Hiroito não segue muitos os rituais da corte. Abandona o uso do quimono, permite a publicação de fotos da família real e assume publicamente sofrer de câncer. Morre em Tóquio, depois de reinar por 63 anos.
É sucedido por seu filho Akihito. Além de levantar o Japão, as pessoas queriam reconstruir suas próprias vidas, vencer a fome e a miséria, cuidar dos órfãos de guerra, dos veteranos mutilados e dos sobreviventes das duas bombas atômicas despejadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki. Com o poder aquisitivo baixo, a busca de entretenimento barato era uma necessidade. Algo muito popular na época ressurgiu, na tentativa de amenizar esses problemas, o qual foi os kami-shibai[7]. Eles são uma forma dos japoneses de contar uma história através de imagens. No século XII, monges budistas usaram os kami-shibai para propósitos de divulgação de seus templos.
Nos anos 20, vendedores de doces começaram a se aproveitar dessa situação. Eles contavam as histórias através de seqüências de imagens, desenhadas em cartolina[8] e fixadas numa estrutura de madeira na parte de trás de suas bicicletas. Durante a exibição, os artistas emitiam alguns sons, no intuito de tornar o ato mais interessante para o público infantil. As séries poderiam ser divididas em atos para que as crianças voltassem para acompanhar a próxima parte da trama, e, obviamente, comprarem mais doces. Com o texto impresso no verso e gigantescas ilustrações coloridas sobre a frente, o formato do cartão de história era muito eficiente para serem apresentados para um grupo maior de crianças. Dependendo da apresentação, o show poderia durar horas. Para não preocupar as mães das crianças, os artistas preparavam um lugar específico para elas ficarem, enquanto a exibição do kami-shibai não terminava. Dentre as obras apresentadas estava Momotaro, a qual contava a história de um garoto que cresce preparado para derrotar os monstros que aterrorizavam sua vila. Em Hanasaka Jii-san, um homem velho tem a habilidade de fazer as plantas florescer, e, em Kaguya-hime, conta à lenda antiga nipônica do surgimento da Princesa da Lua, Kaguya. No início da década de 50, com o início da televisão no Japão, os kami-shibai de rua foram abandonados pelas crianças. Com essa perda de interesse, vários artistas ficaram desempregados. Na época, havia cerca de vinte mil pessoas, que nesse período pós-guerra, se sustentavam com isso. Muitos dos artistas que se dedicaram a essa atividade acabaram se tornando famosos mangakas, dos quais muitos estão no mercado até hoje.
Atualmente, o governo adotou os kami-shibai em todas as instituições de ensino, sejam elas particulares ou públicas, como uma forma a mais de preparar as crianças para uma vida de respeito às tradições e a cultura japonesa. A forma de exibição das ilustrações é ainda a mesma do que era utilizada nas ruas do Japão. Mas, além dos kami-shibai, existe outra questão histórica importante, que ocorreu nesse período do pós-guerra, no intuito de organizar e reestruturar as editoras falidas do Japão, principalmente das regiões de Osaka e Tóquio. Nessa época, em virtude do alto grau de destruição do país, os mangás acabaram se tornando muito caros para o baixo poder aquisitivo da população japonesa. Ao contrário do que muitos pensam, não foi só a área de quadrinhos que enfrentou esse problema. Todas as empresas de entretenimento sabiam que precisavam arrumar um método eficaz de contornar a crise e dar um pouco de alegria àquela geração sofrida do pós-guerra.
A solução para os mangás seria a impressão de algo barato, que alcançasse um número maior de pessoas. Para tornar isso viável era necessário também mudar o papel usado para a impressão. Com a escassez dessa matéria-prima, os editores japoneses decidiram buscar novas alternativas, percebendo que o uso do papel jornal se encaixava perfeitamente nesse projeto. Além de revolucionar o mercado de impressão, o papel jornal fez com que os mangás renascessem das cinzas. Com o aumento da produção de revistas, as editoras se animam em lançar livros de mangás do tipo underground[9], que viriam a ser chamados de akai hon[10]. Segundo Sakurai[11], eles ganharam “um conteúdo suave que buscava fugir dos temas de guerra impostos por Hiroito”. Apesar do sucesso dessas publicações, os desenhistas e roteiristas de mangás recebiam praticamente nada das editoras. Mas, vale-se ressaltar, entretanto, que a política da época de ocupação dos aliados no pós-guerra, permitia certa liberdade aos artistas como nunca haviam tido antes, desde que não atacassem nem os americanos e muito menos os europeus. Esses mangás, publicados em diversas regiões do Japão como Tóquio e Osaka, foram vendidos nas ruas por manga-man[12] e até pelos próprios autores, dependendo da situação em que os mesmos se encontravam financeiramente. Esse tipo de publicação dos mangás deu oportunidade a muitos mangakas como Takashi Miike, Shungiko Ushida e Osamu Tezuka, que nessa época, cursava Medicina na Universidade de Osaka e não era muito conhecido nessa área de quadrinhos. Os akai hon foram muito importantes na decisão de Tezuka de se profissionalizar nessa profissão que o tornaria num dos desenhistas mais famosos do Japão e do mundo. Muito do sucesso desse tipo de publicação no pós-guerra se deve as parcerias com as Livrarias de Empréstimo, que alugavam esses mangás a preços muito baixos para a população sem poder aquisitivo para gastar com algum tipo de diversão. A soma desses acontecimentos foi decisiva para o surgimento de um novo tipo de mangá, cheio de novidades, e, que iria dar início a sua consolidação como um veículo carregado de vários elementos da cultura japonesa. Todo esse processo começou com o projeto audacioso do desenhista japonês Osamu Tezuka.
[1] Luz e Harmonia.
[2] Shimizu, Isamu. Op.cit. 1991. p. 34.
[3] Novo conselho de mangakas do Japão.
[4] Nova geração de mangakas.
[5] MARUYAMA, A. op.cit. p.40.
[6] Idem. Ibdem.p.41.
[7] Teatro de papel.
[8] Nessa época de pouco dinheiro, o papel cartolina era um dos mais baratos.
[9] Revistas marginais.
[10] Livros Vermelhos.
[11] SAKURAI, T.. Tezuka Osamu: jidai to kirimusubu hyogen-sha. Tóquio: ed. Kodansha Gendai Shinsho. 1990.p. 19.
[12] Nome dado aos comerciantes de rua que vendiam mangás. Até hoje, eles podem ser encontrados em muitas regiões do Japão.

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