sábado, 31 de outubro de 2009

O retorno do mito desaparecido Por Tiago Bacelar



Nos anos 1960, a França viveu um momento mágico de ruptura com o cinema clássico hollywoodiano com o movimento da Nouvelle Vague e do auge da revista Cahiers Du cinema. Nessa nova onda surfaram cineastas como Jean-Luc Godard, Alan Resnais, François Truffaut e Eric Rohmer.
A Nouvelle Vague mudou a forma de construção do tempo da narrativa diegética e através de um Jump Cut voamos para 1992, ano de produção do filme Conto de Inverno. Adaptado da peça “The Winter’s Tale”, do inglês William Shakespeare, esta produção cinematográfica foi dirigida pelo mestre dos diálogos, Eric Rohmer.
No cinema, nós temos duas formas de conduzir uma história. A primeira é pelo tempo enquanto experiência estética narrativa. Na segunda, o espectador é guiado para o espaço psicanalítico do personagem. Nós entramos em seu subconsciente, sabemos suas angústias, seus medos, seus pensamentos, se identificando com ele.
Em Conto de Inverno, os personagens são levados dentro da diegese pela força do texto e não pela interpretação ou pela música. A montagem é marcada por planos autônomos e pelo domínio da gramática cinematográfica dos anos 70 e 80. O filme reverbera uma trama extremamente datada, indo de 14 a 31 de dezembro, de um assunto típico do cotidiano, pessoas indo de um lugar para o outro.
Os personagens falam sem titubear, guiando-se pelo texto. Eles ultrapassam as curvas dramáticas desenhadas por Eric Rohmer, chegando a um clímax sem a dramaticidade típica da cinematografia clássica hollywoodiana. Filosoficamente falando, Conto de Inverno traz muito do conceito de Deleuze de Imagem-Tempo e Imagem-Movimento e inúmeras referências a outros autores.
Em questionamentos sobre o sobrenatural, o religioso, a reencarnação e o moralismo, Rohmer explora a dualidade sobre o corpo e o espírito abordados pelo autor de Os Miseráveis, Victor Hugo. Através do texto, o diretor usa a personagem Felície, por sua confusão mental de nunca conseguir se estabelecer num relacionamento fixo, para explicitar a fraqueza da alma dela, apesar da aparência bela externamente.
Isso traz a tona à problemática do descompromisso em relação ao belo e sublime de Kant. A falta de consciência e perda de uma identidade própria por Felície faz renascer o pensamento de reencarnação de Platão. Remetendo a Grécia Clássica, Charles entra na mitologia do mito no tempo diegético de Conto de Inverno.
Em busca do dilema de Hamlet, Ser ou Não, eis a questão, Felície encarna a Julieta em busca do seu amor perdido. Ao abdicar do seu amor por Felície, o cabeleireiro Maxence assume o papel do velho rei ao largar o trono em Rei Lear. Löic seria o Peregrino Apaixonado de Shakespeare, pois não sabe o que fazer na história com sua paixão por Felície. Ele viaja no filme sem direção numa névoa platônica.
Todas essas intertextualidades são muito bem construídas por Eric Rohmer em Conto de Inverno. É uma experiência estética em que nós espectadores somos levados para dentro da diegese por um texto bem amarrado, sem pontos falhos. Fica claro o quanto o diretor tenta nos guiar dentro do universo romântico e tragicômico dos Contos das Quatro Estações, de William Shakespeare.
Existem outros três filmes de Eric Rohmer, explorando o Verão, a Primavera e o Outono. Apesar de em Conto de Inverno possamos ver a dualidade entre Verão e Inverno. O Verão é o porto seguro de Felície, banhando por uma trilha de piano, amor, contemplação da natureza, felicidade e pelo nascimento de sua filha Elise com Charles.
No Inverno encontramos a cidade, o caos urbano, pressa, frio, desconfiança, trabalho de cabeleireira e confusão mental de Felície em meio a múltiplos relacionamentos e vários amores. A protagonista não sabe para onde ir. Está sempre indo e vindo para um lugar qualquer, um lugar nenhum.
Não há o porto seguro do Verão. Nós surfamos na nova onda de Eric Rohmer na sua belíssima construção temporal e espacial de uma história diegética em que esperamos ansiosamente para o surgimento do acaso, o reaparecimento do mito desaparecido e sempre relembrado, e o retorno ao tempo de paz suprindo o caos.

Histórias do Brasil por Tiago Bacelar


Em 2004, já estávamos no segundo ano do primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva na presidência da República no Brasil. Esse ano foi um período do documentário brasileiro celebrar dois filmes de viés políticos: Entreatos, de João Moreira Salles, e Peões, de Eduardo Coutinho. Ambos os documentários retratam a vitória de Lula nas Eleições de 2002.
O documentário “Peões” cumpre bem o seu papel de atuar como um retrato histórico da esquerda no Brasil desde o surgimento da indústria automobilística em São Paulo, em 1959, passando pelo Regime Militar, as greves operárias no ABC entre 1979 e 1980, o nascimento do PT e a campanha presidencial de 2002.
Todas essas informações históricas são repassadas para o espectador, entremeadas entre os depoimentos, em cartelas de texto com fundo preto. Nesse aspecto, o produtor faz uma homenagem ao cinema mudo da Imagem-movimento.
Tal qual fez em Edifício Máster, Eduardo Coutinho intervém diretamente na concepção do produto final a ser veiculado. Ele procura agir de forma intimista com os entrevistados, jogando com as respostas deles e se utilizando de metalinguagem ao mostrar dentro do próprio filme como foi à escolha da linha narrativa do mesmo.
Os espectadores vêem através dos olhos dos participes do movimento grevista, memórias e lembranças ressurgindo de materiais de arquivo em vídeo e fotografias numa montagem ao mesmo tempo clássica e bastante fragmentada. Anônimos ganham vida na telona, reverberando nostalgias de um tempo. São pessoas do presente revendo imagens de um passado longínquo e distante.
Vemos que Peão é “duro que nem jacaré. Cumpre o horário. Bate cartão. Fica na frente da Linha de Montagem”. Além de temas como o sonho de voltar à terra natal, o confronto com a polícia, a violência, a exploração da classe trabalhadora e o sindicalismo, o documentário explora um ponto, em todos os depoimentos, que é o surgimento do mito chamado Lula. Ele é colocado como uma entidade maior que o PT, um ser ao mesmo íntimo e distante.
O trecho citado do Hino Nacional no filme “Verás que um filho teu não foge a luta” expressa bem essa idéia de mito. Somado a isso, reforçando essa tese, Coutinho usa propositalmente em Peões trechos de dois documentários da época: Linha de Montagem, salvo pela mulher do cafezinho, e Greve, de Joaquim Batista de Andrade.
Em Peões, os entrevistados são os espelhos, refletindo em nosso subconsciente, como espectadores, uma vivência do amor, da amizade, do companheirismo, do abandono, do sofrimento, da solidão e da solidariedade. Através da ideologia, religião e militância política, Eduardo Coutinho conseguiu com esse documentário, deixar um representativo e importante documento do legado da história política brasileira.

Cinema e diegese – Uma Metáfora do Real Por Tiago Bacelar



Truman Capote do real ao lado de Marilyn Monroe
Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, versão cinematográfica do livro de Truman Capote

Livro que inspirou o filme Capote

Truman Capote da diegese



Crepúsculo dos Deuses

Christine Collins (Angelina Jolie) da diegese

A Christine Collins do real
Em 113 anos de história cinematográfica, nós, espectadores, fomos acostumados a ver em muitas produções a tradicional frase “filme baseado em fatos reais”. Seguindo uma lógica do naturalismo baziniano, o cinema tornou a fronteira entre ficção e documentário, real e diegese, muito próximas. Movimentos como a Nouvelle-Vague francesa; os cinemas novos brasileiro e alemão, o neo-realismo italiano e a geração New Hollywood foram importantes para a queda desse muro.
Numa espécie de descompromisso com a dualidade entre o sublime e o belo kantiano, a indústria hollywoodiana ignorou o glamour da chamada Era de Ouro, nos anos posteriores a Segunda Guerra Mundial, rompendo com a estética clássica ao incorporar para si inovações trazidas por uma nova onda de diretores.
A ficção incorporou para si o documentário e vice-versa. Pode-se afirmar como marco inaugural da ficção documental, a obra-prima de Orson Welles, Cidadão Kane. O filme aproxima a diegese de Charles Foster Kane do real do magnata da mídia William Randolph Hearst, dono na época de 28 jornais e 18 revistas. Curiosamente, ambos morreram na Cidade dos Anjos. Welles, o Hearst diegético, faleceu em Hollywood, e o Hearst real, em Beverly Hills. Ambos os locais fazem parte do universo do cinema.
Welles transformou a telona numa metáfora do real. Cidadão Kane deu início à propagação do gênero da ficção documental biográfica. Dessa forma, de maneira narcisista, o espectador barthesiano foi hipnotizado pela imagem fílmica projetada da telona exterior para os nossos olhos do subconsciente, sendo levada ao nosso projetor interior. O espectador identifica-se com o personagem, um espelho do seu interior.
O diretor faz o espectador ser guiado para aquele tempo e espaço, refletindo seus desejos e suas vontades, através do protagonista, construído a partir do real. Essa aproximação da diegese cinematográfica com o real é maior ainda se entrarmos no trabalho feito com os atores, principalmente os seguidores do Método de Constantin Stanislaviski, que ensinava para o ator esquecer-se de tudo, deixar fluir.
O que existe é técnica. Todo o resto depende da forma particular como o ator se aproxima do seu papel, do quanto "ama" o seu papel, do que faria se estivesse naquela situação do seu personagem. Nesse contexto, colocamos duas espectadoras. Christine Collins é uma telefonista, que lutou contra o próprio departamento de polícia de Los Angeles, o famigerado LAPD (Los Angeles Police Department) e a Prefeitura para reencontrar seu filho Walter Collins e desvendar o mistério do menino entregue a ela como sendo o seu. Ela viveu na Era do Jazz e da imagem-movimento deleuziana, das melindrosas e de astros como Rodolfo Valentino, Douglas Fairbanks, Gloria Swanson, Mary Pickford e Josephne Baker.
Angelina Jolie é atriz, adepta do Método de Stanislaviski, vive no tempo da imagem-tempo de rompimento com a narrativa clássica hollywoodiana. O cinema de ficção documental biográfico no filme A Troca vai transformar o real na diegese. É o momento de duas espectadoras encarnarem dentro da telona um único espírito, um espelho em que o subconsciente de uma vai refletir no subconsciente da outra.
Temos com isso o nascimento de um novo ser, de uma nova entidade, em um universo semelhante a uma foto antiga de um tempo que não existe mais, de uma Cidade dos Anjos esquecida no passado e trazida de volta pelo diretor Clint Eastwood. A câmera rouchiana, como imagem cinematográfica, traz a tona sintagmas e paradigmas de uma gramática metziana, transformando a diegese em representação do real.
Nesse contexto, o gênero ganha contornos de metáforas da vida e da morte. É o caso, por exemplo, do lírico e belo filme Em Busca da Terra do Nunca. Antes de se tornar o perturbado pirata Jack Sparrow, nós vemos o ator Johnny Depp, encarnando o dramaturgo Jamie M. Barrie, e a atriz Kate Winslet, personificando a mãe do garoto Peter, inspiração para a criação do conto infantil Peter Pan.
Somos levados para um período antes da invenção do cinematógrafo dos irmãos Lumière, dominado pelo teatro. Além de metaforizar a Terra do Nunca como o local em que nós seres humanos vamos após a morte, o filme de Marc Forster utiliza de metalinguagem como referência aos primórdios da atuação no cinema.
Nas primeiras décadas de existência da indústria cinematográfica, como não existia o método de Stanislaviski, a atuação era exagerada e não-naturalista, marcada por uma Misé-én-Scene típica dos grandes teatros, como os exibidos no filme Em Busca da Terra do Nunca. Jamie M. Barrie encarna o típico diretor e roteirista, construtor da típica imagem fílmica clássica hollywoodiana.
Em meio essa mudança para uma imagem-tempo, como elo dessa desconstrução da diegese pelo real, temos a produção do filme Crepúsculo dos Deuses. Dirigido por Billy Wilder, integrante do cinema expressionista alemão e noir, essa produção de história bizarra satiriza os pastiches e mitos da Era de Ouro de Hollywood.
O espectador encarna através da atriz Gloria Swanson, a diva do cinema mudo, Norma Desmond, sentindo na própria pele o lado cruel da imagem-movimento. A chegada do som a imagem cinematográfica, reverbera na produção de imagens fílmicas de forma macabra, perversa e aterrorizante. É um cinema em busca da verdade, do real, doa a quem doer. Rumando por esse sentimento, Hollywood clama por justiça, e seguindo a linha política iniciada na batalha contra o nazismo, produz o épico Todos os Homens do Presidente, de Alan Pakula.
O escândalo Watergate abalou os americanos, já abatidos pela derrota na Guerra do Vietnã. Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, vividos no filme, respectivamente por Robert Redford e Dustin Hoffman, partem para revelar as tramóias do presidente norte-americano Richard Nixon. Mesmo sendo exibido hoje, Todos os Homens do Presidente mexe com a emoção dos espectadores.
Desenvolvemos admiração por aqueles cavaleiros de western modernos, em busca de justiça. Somos levados para um contexto histórico, político e social, que mesmo sendo diferente, nos atrai, nos interessa a descobrir quem são os culpados. Redford e Hoffman assumem uma identidade carismática e instigante a lá Sherlock Holmes e seu assistente Watson.
Contrapondo essa busca da verdade acima de tudo, estão os interesses por trás dessa verdade. O filme de Alan Parker, A Vida de David Gale, vivido por Kevin Spacey, busca indagar e questionar o espectador pela diegese de problemas sociais do real, como as injustiças cometidas pelo Sistema Penal de Estados norte-americanos com relação à pena de morte pela cadeira elétrica.
Outro aspecto importante dos filmes “baseados em fatos reais” é personificar o mito de personalidades da cultura norte-americana. Um exemplo importante é Capote, de Bennett Miller. Philip Seymour Hoffman incorpora de forma avassaladora a personalidade e a aparência do escritor Truman Capote, autor de Bonequinha de Luxo, cuja adaptação cinematográfica contou com a diva da moda, Audrey Hepburn.
O filme retrata a pesquisa de Capote para o livro À Sangue Frio, uma obra que mudou o curso da literatura norte-americana. Hoffman leva-nos para dentro da mente do genial escritor. Mesmo nunca tendo conhecido ou lido nada sobre Capote, o diretor utiliza-se de artifícios, de pontos de fuga, de uma montagem direcionada e de planos compostos especialmente para o espectador entre na sala escura e seja hipnotizado.
A seqüência de imagens fílmicas gera uma memória afetiva no espectador. Ele afasta-se mais e mais daquela sala escura, se incorpora a luz do projetor e é guiado para dentro da diegese. O espectador assume o lugar de Capote, acompanha suas perspectivas de mundo, compartilha delas, está escrevendo o livro com ele.
Além de personificar mitos da cultura norte-americana, cultuar elementos de outras culturas influentes nessa postura mainstream de hegemonia dos Estados Unidos é importante para a propagação do gênero de ficção documental biográfica. Nesse aspecto temos o filme Piaf – Um Hino ao Amor, de Olivier Dahan, um impressionante mergulho no corpo e na alma da artista Edith Piaf, interpretada por Marion Cotillard.
O filme é uma belíssima reconstituição de época e de caracterização da cantora Edith Piaf, desde o abandono da mãe na infância, passando de forma intensa pelo seu reconhecimento internacional, as tragédias na vida pessoal, e sua morte. O diretor Olivier Dahan desconstrói a artista e induz o espectador a tratar Piaf como um membro querido da sua família ou uma grande amiga desde os tempos de infância.
O Método de Stanislaviski é extremamente importante para diminuir cada vez mais a distância entre espectador e personagem. Através desse método, podemos, através do ator, intérprete daquele personagem, assumir um lado de vilão, de maldade e de assassino. É o caso do ditador de Uganda, Idi Amim, magistralmente protagonizado por Forest Whitaker, no filme O Último Rei da Escócia, de Kevin Mac Donald.
O espectador assume o carisma de Amim e seus sonhos num país em que despeja pesadelos, traições e ataques de loucura. Passamos a nos considerar a figura mais poderosa do mundo, aonde a maldade é sublime e bela ao mesmo tempo. O último ponto trabalhado por filmes “baseados em fatos reais” é narrar como tragédias sofridas por espectadores comuns podem mudar a sociedade norte-americana em geral.
Um drama típico envolve doenças raras e a descoberta de uma nova esperança para os doentes. Como ótimo exemplo há o filme O Óleo de Lorenzo, de George Miller. Interpretando Augusto e Michaela Odone, Nick Nolte e Susan Sarandon, buscam a cura do filho Lorenzo, portador de uma doença degenerativa e terminal.
O cinema “baseado em fatos reais” tornou-se muito importante para a geração de um novo típico de público, amante de outras áreas do conhecimento como o teatro, a literatura e a música. Esse novo espectador continuará indo para salas de cinema para ficar mais próximo durante a projeção do seu ídolo favorito, saber mais sobre ele, conhecer seu eu interior e até mesmo assumir seu lugar refletido pelo espelho, elo da diegese com a metáfora do real.

Um metáfora do real por Tiago Bacelar



O Filho da Noiva, Réquiem para um Sonho, O Processo, Persona, Thelma & Louise, Morangos Silvestres e O Anti-Herói Americano são exemplos de um tipo de cinema construtor de tempos a partir do subconsciente de um personagem. Nessa narrativa, os espectadores são guiados pela alma e mente do personagem, nos identificamos com ele, refletindo nele um espelho de nossos desejos, angústias e sentimentos mais profundos.
É o momento dito por Roland Barthes na sala escura de hipnose completa, de mergulho no subconsciente freudiano, de encarnar e de atuar num ser presente num tempo e espaço diferente. A diegese passa a atuar como metáfora do real. Atuando como um ensaio psicanalítico radical em slow motion do adolescente norte-americano, Paranoid Park, dirigido por Gus Van Sant e baseado na obra de Blake Nelson, guia o espectador para um ambiente de profunda angústia interior.
É um mundo inquietante de desagregação familiar de montagem fragmentada, na qual o tempo psicológico constrói um tempo narrativo. Todo o filme baseia-se na perspectiva do protagonista, o jovem skatista Alex Tremain.
Dessa forma, a trama desenvolve-se de forma não-linear, se baseando nos fragmentos desconexos da memória de Alex. Podemos confirmar esse pensamento pelo fato de Paranoid Park repetir várias seqüências exibidas anteriormente, sempre acrescendo novas informações para o espectador.
Gus Van Sant provoca no público um reverberamento do silêncio no mundo diegético e no fluxo de consciência do subconsciente de Alex. O espectador incomoda-se com a morosidade daquele ambiente ao mesmo senil e alucinógeno, aonde nada tem importância. Até mesmo queimar numa fogueira o caderno com as memórias de Alex do Paranoid Park, uma representação do roteiro do filme, está valendo.
O que importa mesmo é jogar por jogar o drama psicológico. A história é irrelevante. O crime acidental no trem de carga não cria nenhuma emoção para os colegas de classe de Alex. Eles riem ao ver a foto do corpo do policial dividido em dois. Tudo é brincadeira. Os jovens não gostam da namorada, mas preferem continuar o relacionamento para satisfazerem seus instintos sexuais.
Há um evidente isolamento no personagem, com muitos planos em apenas ele aparece em foco. Devido à confusão mental de Alex, várias imagens são colocadas propositadamente embaçadas. O caos interior de Alex é representado pela cena dele num banco entre o matagal (morosidade de sua vida) e o oceano embaçado, cujas ondas espelham a única emoção vivida na noite do crime acidental no trem de carga.
É essa dualidade psicológica de Alex que marca o andamento do filme. Entramos no seu subconsciente, através de inúmeras metáforas visuais em slow motion, principalmente de crianças fazendo manobras pelas ruas com skates. A velocidade da câmera em Paranoid Park muda de acordo com os passos e o olhar de Alex.
Ele narra à história enquanto escreve. A primeira relação sexual com a namorada virgem Jennifer, a amizade entranha com Jared, a separação dos pais, o confronto com o detetive, tudo é mostrado do seu ponto de vista.
A trilha sonora bem eclética e juvenil de Paranoid Park indo pelo pop, Hip-Hop, Heavy Metal, Blues e Música Clássica revela a proposta de construir um tempo do ponto de vista mental do adolescente norte-americano. Nesse mundo diegético trazido por Van Sant, vagarosidade, morosidade e descompromisso com a vida bela e sublime kantiana caminham juntas.
A seqüência de imagens fílmicas gera uma memória afetiva no espectador. Ele afasta-se mais e mais daquela sala escura, se incorpora a luz do projetor e é guiado para dentro da diegese. O espectador assume o lugar de Alex, acompanha suas perspectivas de mundo, compartilha delas, está escrevendo a história com ele. Os espectadores querem saber mais sobre ele, conhecer seu eu interior e até mesmo assumir seu lugar refletido pelo espelho, elo da diegese com a metáfora do real.

Feridas de uma história latino-americana Por Tiago Bacelar


Falar em história nos países latinos é tocar numa ferida recente gerada pelas ditaduras militares e em conseqüência disto os desaparecidos políticos. Quem conta à história que aprendemos? É com essa proposta de fazer um cinema em busca da verdade, que encontramos como belíssimo exemplo o filme argentino A História Oficial, de Luís Puenzo.
Buscando trazer à tona o sumiço de bebês, filhos de mulheres presas pela ditadura argentina, o filme reverbera no espectador sentimentos de angústia e perplexidade com a violência imposta pelo regime à sociedade. Um exemplo disso é a genialidade de Puenzo em citar adaptando à sua realidade fílmica a épica cena do monólogo presente em Persona, de Bergman.
Diferente de uma aventura sexual na praia, em A História Oficial, os espectadores encontram novamente uma cena entre duas mulheres, amigas, uma loira e uma morena. Elas contam a história da experiência vivida por elas de tortura e assassinatos de companheiras de cela durante a ditadura.
Da mesma forma que em Persona, apenas o texto basta para construir na mente do espectador o que aconteceu com elas. Não precisa de imagens para mostrar o flashback. Emoções afloram. Acompanhado de um piano, desabafo, riso, choro, recordação, saudade e sofrimento refletem o sofrimento delas na alma do espectador.
A História Oficial tem um estilo bem característico de documentário, explorando depoimentos de personagens reais para aquele mundo construído diegeticamente. Vêem-se no filme também fotos, histórias de cada criança desaparecida e manifestações de familiares pedindo seus filhos de volta com cartazes.
A produção de Puenzo fez uma excelente reconstrução de época num belo trabalho de direção de arte. Nesse contexto entra os personagens principais. Alicia é uma professora de história, casada com Roberto, anarquista e subversivo. Ela sente remorso por seu marido em conivência com a Igreja ter roubado uma menina, hoje sua filha adotada, Gaby. O arrependimento de Alicia é mostrado pelas roupas de bebê, as quais Gaby usava no dia do crime, e pelo encontro inesperado com a suposta avó dela.
A História Oficial é um filme que vale a pena ser visto mesmo aprofunde ainda mais a ferida nascida pelo caos sombrio da história latino-americana.

Um Shakespeare Latino-Americano Por Tiago Bacelar


 Uma colher de sopa de tragédia shakespeariana, uma pitada de dramalhão mexicano e muita comida. É dessa mistura de culinária, romance proibido, história de época e guerra entre México e Estados Unidos, que saiu do forno, Como Água para Chocolate. Produzido em 1992, o divertidíssimo filme do mexicano Alfonso Arau tornou-se um dos primeiros reais sucessos de bilheteria latino-americano.
Toda a história do filme é guiada pela comida. A cebola, representando a lágrima, tempera o chororô sem fim, à melancolia e a tristeza dos personagens. Interpretações exageradas marcam a atuação dos atores. As rosas expressam o sangue como símbolo do romance, da paixão e atração sexual. O fósforo desvenda à alma, a alquimia, a pedra filosofal, à vontade e razão para viver.
A sopa cura a loucura, a insanidade, a perda da razão. A cozinha é a vida. Tita e Pedro encarnam a tragédia shakespeariana de Romeu e Julieta. Amor proibido, indo contra os costumes, rumo à morte trágica. Gertrudes seria uma espécie de Hilda Furacão, de boa família, larga a riqueza para viver num bordel e retorna triunfalmente como generala dos revolucionários mexicanos.
Rosaura é frágil como uma pluma. Mesmo se casando com Pedro e tendo uma filha chamada Esperanza, ela não consegue superar o fantasma da sua irmã Tita, verdadeira dona do coração de seu marido. A mãe representa uma mistura da clássica bruxa má das histórias infantis com a típica assombração dos filmes de terror.
Como Água para Chocolate é bem marcado historicamente, indo de 1895 até 1934, no casamento de Esperanza. A reconstrução de época é interessante, passando pelos cenários, figurinos, costumes e caracterização de personagens. As diferenças entre a família mexicana de Tita, conservadora, e a família americana do dentista, aberta e receptiva, é um bom exemplo do ótimo trabalho de concepção do filme.
O livro de culinária narra à história e o último plano visto é um enquadramento do livro se fechando da mesma forma que os desenhos animados de contos de fada de Walt Disney. São as somas de uma trama bem realizada, atores dedicados a proposta do filme e a intertextualidade de cinema e literatura, que tornaram Como Água para Chocolate num grande sucesso de público e bilheteria. Vale a pena ver de novo.

Um belo poema infantil da história latino-americana Por Tiago Bacelar


Fugindo do ponto de vista adulto da violenta passagem no Chile do Governo comunista de Salvador Allende para a ditadura perversa de Pinochet, Andrés Wood presenteou os espectadores com o filme chileno Machuca, produzido em 2004. A produção contou com suporte de recursos da Espanha, Reino Unido e França. Na ótica de duas crianças conhecemos esse importante momento histórico de outra forma.
Estamos em 1973, no Chile, na Escola inglesa para meninos Saint Patrick, dirigida pelo padre socialista Mc Enroe (Ernesto Malbran). Lá forma-se uma belíssima amizade entre Gonzalo Infante (Matías Quer), um garoto de classe média, e Pedro Machuca (Ariel Mateluna), morador de uma invasão, semelhante a uma favela brasileira. A união desses mundos distantes torna-se possível devido à política comunista de Salvador Allende de abrir as escolas para jovens pobres.
Mais do que tratar da questão política, o filme busca mostrar um momento em que as classes mais baixas chilenas estão politicamente mobilizadas, procurando mais direitos e forçando mudanças fundamentais. É um importante poema infantil de um momento marcante da história latino-americana com fotografia belíssima, música empolgante e interpretações fascinantes dos atores mirins.
Em meio à violência nas ruas, manifestações contrárias e a favor do regime de Allende, Pedro e Gonzalo embarcam numa linda aventura amorosa com a vendedora de bandeirinhas políticas Silvana (Manuela Martelli). Inúmeras descobertas vão nascer desse primeiro amor nascido no caos vivido pelo Chile nos anos 70.
O filme Machuca é guiado pelo olhar de Gonzalo sobre o mercado negro de alimentos, religiosidade, moral, método rígido de ensino, ditadura, tortura, comunismo e direitismo. A relação da produção de Andrés Wood com telenovelas, expressa pelo coronel de direita, Carlos Sotomayor (Pablo Krögh), que assume a Escola Saint Patrick no início da violência da ditadura de Pinochet, não é por acaso.
O nome do personagem foi inspirado no produtor de telenovelas sobre a história mexicana, Carlos Sotomayor, filho do cineasta de 91 filmes, Jesus Sotomayor. Curiosamente, Carlos Sotomayor também é o nome de um pintor chileno, considerado um dos principais expoentes do cubismo na América Latina.
O final trágico de Machuca revela o quanto mexeu naquela geração chilena a terrível passagem do governo de Allende para Pinochet. Nem mesmo a bela amizade de Gonzalo e Pedro, contrária a todos os preconceitos e violências sofridas, e o amor sublime com Silvana, não foram capazes de superar essa terrível mancha na história latino-americana. Andrés Wood conseguiu escrever um poema no meio da dor.

O cinema dentro do cinema Por Tiago Bacelar


Dentre as últimas novidades nas salas de cinema pelo Brasil, há uma grata surpresa. Depois de Kill Bill, os espectadores foram brindados com mais uma obra-prima do diretor Quentin Tarantino. O filme “Bastardos Inglórios” funciona como metáfora da história do próprio cinema.
São inúmeras referências e intertextualidades: Urso Judeu (alusão ao Urso de Ouro de Berlim); Golem (filme expressionista alemão); Chaplin; King Kong; Hollywood; Leni Riefenstahl (atriz e diretora de filmes nazistas como Triunfo da Vontade); Olympia (filme que mostra a vitória do negro Jesse Owens nas Olimpíadas de Berlim diante de Hitler); ator alemão Emil Jannings; e o livro “A Arte da Visão, Coração e Mente: Um Estudo do Cinema alemão nos anos 20” sobre o diretor de filmes de montanha, G.W. Pabst, que tinha como atriz de suas produções, Leni Riefenstahl.
O suposto filme de Joseph Goebbels, “Orgulho da Nação”, é uma alusão a “A Vitória da Fé”, produção de Leni Riefenstahl a pedido do chefe da indústria cinematográfica alemã e Ministro de Propaganda do Terceiro Reich. O filme relata a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. Até mesmo, problemas técnicos do cinema como o material inflamável a base de nitrato das antigas películas em 35 mm é explorado por Tarantino.
O incêndio do cinema na França, carregado de nazistas, é uma metáfora dentro da diegese do real, pois inúmeras salas de exibição por todo o mundo, inclusive o Brasil tiveram esse mesmo final trágico por causa da alta concentração de nitrato na película. A violência excessiva do bastão de beisebol homenageia a épica cena do extintor de incêndio do filme Irreversível.
Por se tratar também de um filme ambientado na Segunda Guerra Mundial, Tarantino parodia e satiriza produções cinematográficas de ficção e documentários sobre esse período histórico. Uma bandeira branca da paz serve de “capa” para Hitler. Abusa da narração, de recortes de jornal, do típico herói de guerra, da idéia de “morrer pelo país”, da representação do mal e do cruel, e do clichê de deixar corpos espalhados por todo o filme. Não podemos deixar de comentar o fato irônico dos soldados do pelotão “Bastardos”, do tenente Aldo Raine (Brad Pitt) ser de judeus.
Num belíssimo trabalho de cinismo com o real, Tarantino mistura música de faroeste com Sinfonia de Beethoven, ataca de ópera na execução de judeus por nazistas, funde música pop estilo Kill Bill com violões de Tango Argentino para matar nazistas e de tambores de marcha militar no confronto de patentes baixas e altas. Com diálogos em inglês, francês e alemão, Bastardos Inglórios faz uma excelente reconstituição de época com magistral caracterização de personagens, de cenários e objetos cênicos como cartazes e outdoor encaixados primamente dentro da Mise-én-Scene.
Bastardos Inglórios põe Quentin Tarantino num patamar ainda maior no ranking de melhores cineastas contemporâneos. É filme que merece ser visto como um tipo de cinema, reflexo do próprio cinema.