sábado, 31 de outubro de 2009

Cinema e diegese – Uma Metáfora do Real Por Tiago Bacelar



Truman Capote do real ao lado de Marilyn Monroe
Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, versão cinematográfica do livro de Truman Capote

Livro que inspirou o filme Capote

Truman Capote da diegese



Crepúsculo dos Deuses

Christine Collins (Angelina Jolie) da diegese

A Christine Collins do real
Em 113 anos de história cinematográfica, nós, espectadores, fomos acostumados a ver em muitas produções a tradicional frase “filme baseado em fatos reais”. Seguindo uma lógica do naturalismo baziniano, o cinema tornou a fronteira entre ficção e documentário, real e diegese, muito próximas. Movimentos como a Nouvelle-Vague francesa; os cinemas novos brasileiro e alemão, o neo-realismo italiano e a geração New Hollywood foram importantes para a queda desse muro.
Numa espécie de descompromisso com a dualidade entre o sublime e o belo kantiano, a indústria hollywoodiana ignorou o glamour da chamada Era de Ouro, nos anos posteriores a Segunda Guerra Mundial, rompendo com a estética clássica ao incorporar para si inovações trazidas por uma nova onda de diretores.
A ficção incorporou para si o documentário e vice-versa. Pode-se afirmar como marco inaugural da ficção documental, a obra-prima de Orson Welles, Cidadão Kane. O filme aproxima a diegese de Charles Foster Kane do real do magnata da mídia William Randolph Hearst, dono na época de 28 jornais e 18 revistas. Curiosamente, ambos morreram na Cidade dos Anjos. Welles, o Hearst diegético, faleceu em Hollywood, e o Hearst real, em Beverly Hills. Ambos os locais fazem parte do universo do cinema.
Welles transformou a telona numa metáfora do real. Cidadão Kane deu início à propagação do gênero da ficção documental biográfica. Dessa forma, de maneira narcisista, o espectador barthesiano foi hipnotizado pela imagem fílmica projetada da telona exterior para os nossos olhos do subconsciente, sendo levada ao nosso projetor interior. O espectador identifica-se com o personagem, um espelho do seu interior.
O diretor faz o espectador ser guiado para aquele tempo e espaço, refletindo seus desejos e suas vontades, através do protagonista, construído a partir do real. Essa aproximação da diegese cinematográfica com o real é maior ainda se entrarmos no trabalho feito com os atores, principalmente os seguidores do Método de Constantin Stanislaviski, que ensinava para o ator esquecer-se de tudo, deixar fluir.
O que existe é técnica. Todo o resto depende da forma particular como o ator se aproxima do seu papel, do quanto "ama" o seu papel, do que faria se estivesse naquela situação do seu personagem. Nesse contexto, colocamos duas espectadoras. Christine Collins é uma telefonista, que lutou contra o próprio departamento de polícia de Los Angeles, o famigerado LAPD (Los Angeles Police Department) e a Prefeitura para reencontrar seu filho Walter Collins e desvendar o mistério do menino entregue a ela como sendo o seu. Ela viveu na Era do Jazz e da imagem-movimento deleuziana, das melindrosas e de astros como Rodolfo Valentino, Douglas Fairbanks, Gloria Swanson, Mary Pickford e Josephne Baker.
Angelina Jolie é atriz, adepta do Método de Stanislaviski, vive no tempo da imagem-tempo de rompimento com a narrativa clássica hollywoodiana. O cinema de ficção documental biográfico no filme A Troca vai transformar o real na diegese. É o momento de duas espectadoras encarnarem dentro da telona um único espírito, um espelho em que o subconsciente de uma vai refletir no subconsciente da outra.
Temos com isso o nascimento de um novo ser, de uma nova entidade, em um universo semelhante a uma foto antiga de um tempo que não existe mais, de uma Cidade dos Anjos esquecida no passado e trazida de volta pelo diretor Clint Eastwood. A câmera rouchiana, como imagem cinematográfica, traz a tona sintagmas e paradigmas de uma gramática metziana, transformando a diegese em representação do real.
Nesse contexto, o gênero ganha contornos de metáforas da vida e da morte. É o caso, por exemplo, do lírico e belo filme Em Busca da Terra do Nunca. Antes de se tornar o perturbado pirata Jack Sparrow, nós vemos o ator Johnny Depp, encarnando o dramaturgo Jamie M. Barrie, e a atriz Kate Winslet, personificando a mãe do garoto Peter, inspiração para a criação do conto infantil Peter Pan.
Somos levados para um período antes da invenção do cinematógrafo dos irmãos Lumière, dominado pelo teatro. Além de metaforizar a Terra do Nunca como o local em que nós seres humanos vamos após a morte, o filme de Marc Forster utiliza de metalinguagem como referência aos primórdios da atuação no cinema.
Nas primeiras décadas de existência da indústria cinematográfica, como não existia o método de Stanislaviski, a atuação era exagerada e não-naturalista, marcada por uma Misé-én-Scene típica dos grandes teatros, como os exibidos no filme Em Busca da Terra do Nunca. Jamie M. Barrie encarna o típico diretor e roteirista, construtor da típica imagem fílmica clássica hollywoodiana.
Em meio essa mudança para uma imagem-tempo, como elo dessa desconstrução da diegese pelo real, temos a produção do filme Crepúsculo dos Deuses. Dirigido por Billy Wilder, integrante do cinema expressionista alemão e noir, essa produção de história bizarra satiriza os pastiches e mitos da Era de Ouro de Hollywood.
O espectador encarna através da atriz Gloria Swanson, a diva do cinema mudo, Norma Desmond, sentindo na própria pele o lado cruel da imagem-movimento. A chegada do som a imagem cinematográfica, reverbera na produção de imagens fílmicas de forma macabra, perversa e aterrorizante. É um cinema em busca da verdade, do real, doa a quem doer. Rumando por esse sentimento, Hollywood clama por justiça, e seguindo a linha política iniciada na batalha contra o nazismo, produz o épico Todos os Homens do Presidente, de Alan Pakula.
O escândalo Watergate abalou os americanos, já abatidos pela derrota na Guerra do Vietnã. Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, vividos no filme, respectivamente por Robert Redford e Dustin Hoffman, partem para revelar as tramóias do presidente norte-americano Richard Nixon. Mesmo sendo exibido hoje, Todos os Homens do Presidente mexe com a emoção dos espectadores.
Desenvolvemos admiração por aqueles cavaleiros de western modernos, em busca de justiça. Somos levados para um contexto histórico, político e social, que mesmo sendo diferente, nos atrai, nos interessa a descobrir quem são os culpados. Redford e Hoffman assumem uma identidade carismática e instigante a lá Sherlock Holmes e seu assistente Watson.
Contrapondo essa busca da verdade acima de tudo, estão os interesses por trás dessa verdade. O filme de Alan Parker, A Vida de David Gale, vivido por Kevin Spacey, busca indagar e questionar o espectador pela diegese de problemas sociais do real, como as injustiças cometidas pelo Sistema Penal de Estados norte-americanos com relação à pena de morte pela cadeira elétrica.
Outro aspecto importante dos filmes “baseados em fatos reais” é personificar o mito de personalidades da cultura norte-americana. Um exemplo importante é Capote, de Bennett Miller. Philip Seymour Hoffman incorpora de forma avassaladora a personalidade e a aparência do escritor Truman Capote, autor de Bonequinha de Luxo, cuja adaptação cinematográfica contou com a diva da moda, Audrey Hepburn.
O filme retrata a pesquisa de Capote para o livro À Sangue Frio, uma obra que mudou o curso da literatura norte-americana. Hoffman leva-nos para dentro da mente do genial escritor. Mesmo nunca tendo conhecido ou lido nada sobre Capote, o diretor utiliza-se de artifícios, de pontos de fuga, de uma montagem direcionada e de planos compostos especialmente para o espectador entre na sala escura e seja hipnotizado.
A seqüência de imagens fílmicas gera uma memória afetiva no espectador. Ele afasta-se mais e mais daquela sala escura, se incorpora a luz do projetor e é guiado para dentro da diegese. O espectador assume o lugar de Capote, acompanha suas perspectivas de mundo, compartilha delas, está escrevendo o livro com ele.
Além de personificar mitos da cultura norte-americana, cultuar elementos de outras culturas influentes nessa postura mainstream de hegemonia dos Estados Unidos é importante para a propagação do gênero de ficção documental biográfica. Nesse aspecto temos o filme Piaf – Um Hino ao Amor, de Olivier Dahan, um impressionante mergulho no corpo e na alma da artista Edith Piaf, interpretada por Marion Cotillard.
O filme é uma belíssima reconstituição de época e de caracterização da cantora Edith Piaf, desde o abandono da mãe na infância, passando de forma intensa pelo seu reconhecimento internacional, as tragédias na vida pessoal, e sua morte. O diretor Olivier Dahan desconstrói a artista e induz o espectador a tratar Piaf como um membro querido da sua família ou uma grande amiga desde os tempos de infância.
O Método de Stanislaviski é extremamente importante para diminuir cada vez mais a distância entre espectador e personagem. Através desse método, podemos, através do ator, intérprete daquele personagem, assumir um lado de vilão, de maldade e de assassino. É o caso do ditador de Uganda, Idi Amim, magistralmente protagonizado por Forest Whitaker, no filme O Último Rei da Escócia, de Kevin Mac Donald.
O espectador assume o carisma de Amim e seus sonhos num país em que despeja pesadelos, traições e ataques de loucura. Passamos a nos considerar a figura mais poderosa do mundo, aonde a maldade é sublime e bela ao mesmo tempo. O último ponto trabalhado por filmes “baseados em fatos reais” é narrar como tragédias sofridas por espectadores comuns podem mudar a sociedade norte-americana em geral.
Um drama típico envolve doenças raras e a descoberta de uma nova esperança para os doentes. Como ótimo exemplo há o filme O Óleo de Lorenzo, de George Miller. Interpretando Augusto e Michaela Odone, Nick Nolte e Susan Sarandon, buscam a cura do filho Lorenzo, portador de uma doença degenerativa e terminal.
O cinema “baseado em fatos reais” tornou-se muito importante para a geração de um novo típico de público, amante de outras áreas do conhecimento como o teatro, a literatura e a música. Esse novo espectador continuará indo para salas de cinema para ficar mais próximo durante a projeção do seu ídolo favorito, saber mais sobre ele, conhecer seu eu interior e até mesmo assumir seu lugar refletido pelo espelho, elo da diegese com a metáfora do real.

Nenhum comentário: