segunda-feira, 2 de julho de 2007

Crítica da Crítica no Jornalismo Cultural

Texto por Tiago Bacelar (autor deste blog)
Apesar de ter alguns momentos interessantes, a crítica “a filosofia por trás do cinema” da Agência Folha, publicada no caderno Viver de 04/01/2005 no jornal Diário de Pernambuco sofre, na verdade, de uma falta de ousadia e coragem do crítico em abandonar o lado puramente descritivo, onde os seus exemplos se confundem com a própria obra critica “O que Sócrates diria a Woody Allen”, do espanhol Juan Antonio Rivera. Entretanto é necessário ressaltar que a comparação, logo no primeiro parágrafo com o Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, é muito pertinente.
Assim como no livro de Rivera, o Mundo de Sofia, lançado em 1991, faz uma introdução ao mundo da filosofia. Na história, a menina Sofia, ao voltar da escola, num certo dia, encontra dois envelopes brancos. Cada um continha uma indagação para Sofia fazer uma introspecção psicológica do sentido da vida e da origem do mundo. Para fazer isso, ela vai para um esconderijo no jardim de sua casa, uma espécie de Éden da Bíblia. Na seqüência, a crítica, de certa forma, limita e menospreza o livro “elogiado” ao afirmar que Rivera escreveu para um universo de amantes do período neoclássico, de uma forma não-didática como é feita no Mundo de Sofia.
No trecho “de qualquer modo, Rivera recorre a filmes clássicos (Casablanca), cult (Blade Runner) e blockbusters (Matrix) para descobrir como as idéias de Platão, Sócrates, Santo Agostinho e Nietzche foram contrabandeadas para a tela por grandes e pequenos autores do cinema”, a “crítica” usa-se muito mal do artifício do tipo textual de descrição, pois ele confunde o leitor se aqueles exemplos citados são realmente do autor do respectivo texto ou do próprio Rivera. Apesar disso, fica claro, na crítica, que “o que Sócrates diria a Woody Allen” relaciona filmes criados com base em idéias da filosofia.
Esse conceito colocado por Rivera está ligado, por exemplo, ao uso do robô “humano”, pelos seguidores da pós-modernidade e das idéias do período neoclássico, que buscavam criar uma consciência capaz de quebrar com o grande divisor que separava a Arte de vanguarda da Indústria Cultural, buscando unir cada vez mais as esferas públicas eruditas, populares e de massas. Foi acreditando nisso, que, em 1982, o norte-americano Ridley Scott adaptou a obra de Philip Dick, “Do Androids Dream of Electric Shee?”, para criar o longa-metragem Blade Runner – o Caçador de Andróides.
A história se passa em Los Angeles, onde o alimento é escasso e a população vive apertada em arranha-céus. No início do século XXI, uma grande corporação desenvolve robôs mais fortes, inteligentes e ágeis que os seres humanos, chamados de “Replicantes”, com o objetivo de colonizar e explorar outros planetas. Por terem “alma” humana, os “Replicantes” mais evoluídos decidem fazer uma rebelião, em uma colônia fora da Terra. O incidente leva os humanos a proibirem a entrada desses robôs no nosso planeta, sob a pena de “execução”. Dessa forma, é criado um esquadrão de elite, formado por policiais, conhecidos como Blade Runner.
Passam-se alguns anos, e, chegamos a 2019, onde os humanos são surpreendidos com a vinda de cinco Replicantes a Terra. Para caçá-los, o ex-Blade Runner Rick Deckard, interpretado pelo ator Harrison Ford, é convocado. É nesse contexto que uma batalha catastrófica e exagerada entre homens e robôs começa. A construção cenográfica e no design desse filme é marcada pela fragmentação, pela descontinuidade, pelo pluriculturalismo e pelo caos, todos, elementos típicos da pós-modernidade. E por que não dizer do próprio “sentido moral da vida”, passado por Sócrates na Grécia antiga, polireligiosa e mitológica, e, vistos nos próprios filmes de Woody Allen.
O filme de Scott traz uma Los Angeles, parecida, a princípio, com um asilo de loucos, mostrando um futuro que virá como um pesadelo, que deixará de existir ao acordarmos. Mas, Blade Runner provou que os mitos deixaram de ser um mero um sonho coletivo, para se tornar no pior pesadelo para a humanidade, de ser substituída por máquinas, criadas por ela mesma. No segundo parágrafo, a crítica traz uma seqüência do filme “Hannah e suas irmãs”, de Woody Allen.
“Para quem esqueceu a história de Hannah basta lembrar da seqüência mais hilariante, em que Woody Allen, na pele do hipocondríaco marido de Mia Farrow, passa por uma crise existencial e tenta se apegar à religião, comprando livros, crucifixos e imagens de santos. Tudo para descobrir o sentido da vida. Não encontra consolo em nenhuma das crenças. Reencarnação não lhe parece nada interessante. Tem medo de voltar na pele de uma foca. O catolicismo tampouco o atrai. Morrer agora e pagar depois é muito para o personagem de Woody, que, além disso, teve educação judaica. Virar hare krishna não pegar bem para um míope magro como ele, capaz de ser confundido como uma banana pintada dançando pelas ruas”.
Nesse exemplo, não é possível para o leitor, identificar se o trecho do filme partiu do crítico da obra de Rivera. Ele deveria ter lido um pouco mais Daniel Piza, que afirma que “o crítico deve saber argumentar em defesa ou não da obra analisada, não se atendo apenas em tipos textuais descritivos, como também indo às características intrínsecas da obra e situando-a na perspectiva artística e histórica. Quer goste ou desgoste de um trabalho, sua tentativa é fundamentar essa avaliação”. Faltou a “filosofia por trás do cinema” mais detalhes como os tipos textuais da obra, o uso de figuras de linguagem e uma própria análise do estilo de escrita do autor espanhol.
Ainda seguindo os conceitos de Daniel Piza, o crítico, apesar de escrever bem, ele não evita o exagero, o deslumbre, a confusão entre o livro e ele mesmo, misturando a presença física daquela "obra" e sua verdadeira e real função numa produção do jornalismo cultural. Dessa forma, o crítico incorpora-se a Rivera de tal forma a ponto de não haver meios dos leitores compreenderem quem é quem naquela crítica. O trecho de Hannah e suas Irmãs, descrito acima, serve apenas como uma comprovação da presença da filosofia de Sócrates em Woody Allen, ou seja, segue o pensamento de Rivera.
No terceiro parágrafo, a crítica continua seguindo ao velho clichê da descrição, como se pode verificar nesse trecho: “Tentar descaradamente obter benefícios mentais com a religião, observa Rivera, é uma atitude racional que pode servir ao riso, mas está longe de apontar uma solução filosófica apaziguadora. A solução é o amor, aponta o autor, evocando o epílogo do clássico Cidadão Kane, em que, depois de uma existência poderosa, o público assiste à derrocada do magnata de imprensa Charles Foster Kane. De sua vida restam apenas duas lembranças proustianas: um trenó e um peso de papel, ambos objetos de sua infância. Só nela Kane encontra o conforto do amor verdadeiro (da mãe), porque não aprendeu a principal lição: estima e afeto não se compram, mas se conseguem com doação ao próximo”.
Mas uma vez o nosso “caríssimo amigo” da Agência Folha nos dá uma verdadeira lição de como não expressar nenhuma posição em relação à obra “o que Sócrates disse a Woody Allen”. É comovente, meu estimado leitor, se nem mesmo Charles Kane conseguiu ver o poder da estima, do afeto e da doação ao próximo, quem dirá a competência desse crítico em fazer algo mais embasado em opiniões e principalmente mais comparações com outras obras. Pelo visto, a citação do Mundo de Sofia foi apenas um descuido ou uma pequena desatenção do crítico.
Depois de tantos obstáculos e pedras no meio do caminho, caro leitor, chegamos ao quarto parágrafo, onde, para o meu espanto, o milagre, o impossível, parecia que finalmente iria acontecer. Bem, acompanhem mais essa perola do nosso ilustre crítico. “Dito assim, o livro de Rivera pode parecer um catecismo dirigido a crianças malvadas. De fato, trata-se de uma obra de iniciação filosófica, embora discuta temas profundos como o livre-arbítrio, tema do assustado filme de ficção de Stanley Kubrick, a Laranja Mecânica. Nele, o contraventor Alex é submetido a um tratamento de choque, vira um títere desprovido de vontade, sofre agressões de quem maltratou no passado e, finalmente, recupera sua capacidade de fazer o mal. É o pretexto para Rivera discutir o “gosto moral”, formado pelo imaginário cinematográfico. Ao escolher um filme, defende ele, não estamos apenas sendo seletivos, mas buscando afirmar nossa auto-imagem por meio de metapreferências”.
Aleluia, podem jogar a água benta, pagar promessa e se benzer, caro leitor, o nosso crítico finalmente resolveu usar a cabeça para se utilizar do tipo textual da interpretação da obra. Depois de muitos séculos de leitura e paradas para tomar um remédio para críticas de “grande” análise, pudemos, nesse momento histórico, saber um pouco do que estava implícito em “o que Sócrates disse para Woody Allen”.
A função básica da crítica é fazer um julgamento pessoal, qualificando uma obra em escala local ou global, dando a concordância ou discordância da mesma para o leitor. Segundo Daniel Piza, o crítico deve primeiro, tentar compreender a obra, colocar-se no lugar do outro, suspender seus preceitos, para então sedimentar as idéias e, mesmo que exprimindo dúvidas, chegar a uma avaliação. O leitor, além do próprio artista, quer essa reação. Quer saber por que vale a pena ou não ter acesso àquela determinada obra.
“É interessante à relação que Rivera estabelece entre filmes tão diferentes como Viver, de Kurosawa, e, Blade Runner, de Ridley Scott, para concluir que os dois tratam do mesmo tema: a busca do sentido para uma vida menos contemplativa que a do burocrata do filme japonês, ou do replicante do inglês Scott. Se nem a filosofia de Rivera, nem os filmes que abordou convencerem o leitor, ele sugere uma leitura fundamental “Do Amor”, de Stendhal”.
Em seu último parágrafo, “a filosofia por trás do cinema” mostra que apesar dos pesares é uma crítica de qualidade razoável. Rivera procurou analisar, assim como Stendhal fez, como o cinema uniu-se a filosofia neoclássica, para abordar a natureza do sentimento amoroso e dos aspectos correlacionados a ele, os quais lhe dão um conjunto de regras e um papel tão importante para os costumes da sociedade e para a vida humana. O texto da Agência Folha tem altos e baixos, assim como, qualquer carreira de crítico. É dessa forma que funciona a prática do Jornalismo Cultural.

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