segunda-feira, 2 de julho de 2007

Mangá: Cinema em Quadrinhos.

Texto por Tiago Bacelar (autor deste blog)
A arte de contar as histórias por meio de desenhos no Japão começou há muito tempo. O mangá é usado para fazer campanhas políticas, ensinar a praticar esportes, dar uma receita de comida, e, pode até gerar uma moda no Japão. Eles podem abordar também temas polêmicos como a pornografia, o complexo de lolita, a religião, o homossexualismo, as drogas, a violência urbana, o esoterismo, e principalmente a vida cotidiana do povo japonês. Poder-se-ia dizer, que tudo vira mangá. A diversidade de assuntos é bem vasta se comparada com a dos quadrinhos ocidentais.
No geral, os mangás são publicados, inicialmente em capítulos semanais de vinte a vinte e três páginas e depois são compilados numa edição encadernada. Devido a serem originalmente publicados em revistas, eles tendem a ser em preto e branco. Os trabalhos mais populares são reproduzidos em massa por vários anos e posteriormente são relançados em dúzias de volumes em livros. Sabe-se que o mangá está ligado à cultura nipônica. Para entender como tudo começou, é necessário voltar no tempo.
Ao sair vitorioso na famosa batalha de Sekigahara, o clã Tokugawa dá início ao período Tokugawa (1602-1867), com a posse de seu primeiro imperador, Tokugawa Ieyasu. Essa figura histórica foi decisiva para a criação de um modelo, capaz de moldar para as décadas seguintes como seria ditada a vida dos japoneses, principalmente num contexto social, beneficiando várias instituições de cunho político e econômico. Ieyasu institui, em 1635, o Sankin Kotai, que obrigava os senhores feudais a residirem em Edo.
A implantação desse sistema ajudou a trazer novas pessoas e idéias para o desenvolvimento de Edo e principalmente dos grandes centros urbanos do Japão como a região de Kyoto, que gerou o surgimento de uma fortalecida e unificada cultura nipônica cheia de tradições e regras, as quais muitas permanecem até hoje e que foram fundamentais para o surgimento do mangá décadas mais tarde.
O progresso da cultura nativa japonesa, durante a dinastia Tokugawa, foi de grande auxílio para o nascimento de grandes autores como Basho Matsuo (1644–1694), que foi o maior poeta de haiku, e Monzaemon Chikamatsu (1653 – 1724), considerado o "Shakespeare japonês” por ter começado escrevendo para o teatro de Marionetes. O rígido controle sobre a economia, por parte dos Tokugawa, não impediu o crescimento das grandes cidades e o enraizamento de uma série de normas e tradições que ditariam a cultura nipônica para as próximas gerações.
Os grandes fenômenos culturais dessa época foram o teatro popular do Kabuki e do Bunraku. Eles trouxeram como conseqüência a produção de ilustrações com características bem particulares, que retratavam com louvor o modo de vida político, econômico e cultural dos japoneses. Por volta de 1860, essas gravuras já empregavam cerca de seis mil pessoas. Feitas e esculpidas em madeira, esses tipos de artes foram chamados de ukiyo-ê. Elas tinham como principal característica fazer uma crítica aos lordes feudais, responsabilizando-os pelo estado que as classes mais pobres se encontravam. Vale-se ressaltar, que elas não eram diretas, ou seja, os artistas usavam símbolos para fazer ataques indiretos cheios de ironia e ressentimento. As ilustrações tentavam atingir o mais profundo dos sentimentos humanos, sem se preocuparem muito com a anatomia dos personagens retratados.
Dessa forma, os ukiyo-ê não poderiam em hipótese nenhuma serem enquadradas na categoria de caricatura, pois a semelhança com a pessoa satirizada é fundamental. Elas foram utilizadas como forma de arte no período de 1600 a 1867. Entre os artistas do ukiyo-ê, estava Katsushita Hokusai (1760-1849). Ele foi à primeira pessoa a cunhar a palavra mangá. Apesar de existirem algumas evidências de que ela foi usada antes, entre 1761 e 1816, pelo renomado autor Santo Kyoden, o qual teria utilizado esse termo para denominar os retratos falados que fazia das pessoas que compravam tabaco na sua loja.
Entre 1814 e 1849, Hokusai criou uma série de 15 volumes chamada por ele de Hokusai Manga, um espelho daquele tempo e do próprio gênio do autor, sabendo captar e ilustrar a vida como um todo. Foi um marco para o surgimento do mangá moderno, mas parecia mais com uma ilustração do que com uma história em quadrinhos. A palavra mangá não foi usada para descrever essa forma de arte até os séculos XVII e XVIII. Katsushita Hokusai era uma pessoa que tinha uma filosofia muito diferente sobre a arte e os portifólios feitos em blocos de madeira, que eram típicos para a época. Ele era um homem com uma natureza um tanto rebelde.
Hokusai nasceu na província de Honjo, ao leste de Edo, em 1760, e, começou a se interessar por desenho desde os cinco anos. Sua entrada para o mundo do ukiyo-ê ocorreu quando tinha apenas 16 anos. Em 1789, Hokusai ganhou fama ao publicar trabalhos sobre os atores do Kabuki. Passado essa fase, ele começou a fazer ilustrações mais adultas, abordando temas como a pornografia, o erotismo, o drama e o romance. Nesse período, Hokusai buscava chocar a sociedade e o próprio governo com a sua ousadia. Devido a isso, seus trabalhos acabaram sendo censurados várias vezes.
Nos anos 20, Hokusai pintou as séries sobre as Pontes, Shokoku Meikyo Kiran e as Cascatas, Shokoku Takimeguri. Em 1934, ele produziu as 36 Visões do Monte Fuji, Fugaku Sanjurakkei. Nesse trabalho, o artista mostrou vários caminhos de se ver esse famoso ponto turístico do Japão. Com essa série de quadros, Hokusai tornou-se uma referência para os amantes e também iniciantes da arte do ukiyo-ê.
Hokusai era conhecido por responder aos seus professores e por desafiar continuamente seus métodos de fazer coisas. Poderia eventualmente fazer a sua própria arte, e isso foi pensado através dos quase 30 mil objetos artísticos comprados por ele. Alguns eram agrupados em coleções e livros, e, que o fez sobreviver no meio. Hokusai fez muitos objetos diferentes, influenciados pelas artes e filosofias artísticas francesas e holandesas de grandes nomes como Degas, Van Gogh, Monet e Toulouse-Lautrec. Mas, vale-se ressaltar, que nenhum desses trabalhos, se pareceu com o seu estilo original que tinha chamado de mangá. Hokusai planejou criar um novo tipo de entretenimento ou uma parte significativa da arte de ilustrar o cotidiano.
A maior parte das ilustrações feitas por Hokusai era de retratos das paisagens que ele presenciou nas suas andanças pelo país. Essa proposta livre de Hokusai, embora ele inicialmente não pretendesse que fosse ser assim, pode ter sido a base para a diversidade dos artistas de mangá nas décadas seguintes. Eles passaram a ver que não deveria existir um formato pré-determinado para se criar uma imagem, e, que eles podiam inovar desenhando muitos tipos diferentes de personagens e de histórias.
Toda essa abertura fez, com que, desenhistas com a visão mais aberta aceitassem mais esses novos estilos de desenhar e que eram muito mais do que ele queria descrever nas suas histórias. Com o fim da Era Tokugawa, o Japão entra na Era Meiji (1868-1911), e, o país é reaberto novamente para os estrangeiros. Nesse período, Rakuten Kitazawa (1876-1955), influenciado pelos quadrinhos norte-americanos, criou o primeiro mangá com personagens regulares, que foi a obra Tagesaku to Mokube no Tokyo Kembutsu, publicada semanalmente na revista Jiji Manga.
Curiosamente, ele conseguiu com esse título, popularizar a profissão de Jornalista no Japão. O final dos anos 20 foi marcado por uma grande explosão de revistas desenhadas por artistas japoneses. Esse processo tornou mínimas as chances de sucesso de qualquer publicação estrangeira no mercado editorial do Japão.
Um dos motivos para isso foi a notável diferença que foi sendo criada entre os mangás e os quadrinhos do ocidente, onde os mangakas desenvolveram um estilo cinematográfico, onde a imagem valia mais do que as palavras. Nesse período, os mangás passaram a ter histórias que se diversificavam pelo traço, tipo de público que pretendiam atingir e personagens com características únicas para cada estilo criado. Eles foram se desenvolvendo de tais formas e de maneiras tão diferentes, que simultaneamente acabaram formando linguagens universais destinadas desde uma criança e um adolescente a um público mais adulto.
Essa tendência de se voltar para vários gêneros foi diferente, de modo geral, da do Ocidente, onde não existe uma separação tão grande entre os leitores. Durante o período da Segunda Guerra, os mangás foram usados para incentivar o ódio ao ocidente, aumentar o nacionalismo exacerbado e fascista da população e promover uma verdadeira lavagem cerebral nos desenhistas nipônicos. Em 1945, com o fim da guerra, as editoras nipônicas, que existiam na época, estavam falidas.
Praticamente não existiam mais mangás no Japão, em virtude do altíssimo grau de destruição e caos que o país se encontrava. Com o poder aquisitivo baixo, a busca de entretenimento barato era uma necessidade. Algo muito popular na época ressurgiu, na tentativa de amenizar esses problemas, o qual foi os kami-shibai. Eles foram uma forma encontrada pelos japoneses de contar uma história através de imagens. No século XII, monges budistas usaram os kami-shibai para propósitos de divulgação de seus templos. Nos anos 20, vendedores de doces começaram a se aproveitar dessa situação. Eles contavam as histórias através de seqüências de imagens, desenhadas em cartolina e fixadas numa estrutura de madeira na parte de trás de suas bicicletas.
Durante a exibição, os artistas emitiam alguns sons, no intuito de tornar o ato mais interessante para o público infantil. As séries poderiam ser divididas em atos para que as crianças voltassem para acompanhar a próxima parte da trama, e, obviamente, comprarem mais doces. Com o texto impresso no verso e gigantescas ilustrações coloridas sobre a frente, o formato do cartão de história era muito eficiente para serem apresentados para um grupo maior de crianças.
Dependendo da apresentação, o show poderia durar horas. Para não preocupar as mães das crianças, os artistas preparavam um lugar específico para elas ficarem, enquanto a exibição do kami-shibai não terminava. No início da década de 50, com o início da televisão no Japão, os kami-shibai de rua foram abandonados pelas crianças. Com essa perda de interesse, vários artistas ficaram desempregados. Na época, havia cerca de vinte mil pessoas, que se sustentavam com isso.
Muitos dos artistas que se dedicaram a essa atividade acabaram se tornando famosos mangakas, dos quais muitos estão no mercado até hoje. Atualmente, o governo adotou os kami-shibai em todas as instituições de ensino, sejam elas particulares ou públicas, como uma forma a mais de preparar as crianças para uma vida de respeito às tradições e a cultura japonesa. A forma de exibição das ilustrações é ainda a mesma do que era utilizada nas ruas do Japão.
Esse tipo de publicação dos mangás deu oportunidade a muitos mangakas como Takashi Miike, Shungiko Ushida e Osamu Tezuka, que nessa época, cursava Medicina na Universidade de Osaka e não era muito conhecido nessa área de quadrinhos. Nascido na região de Osaka, no Japão, no ano de 1926, Osamu Tezuka, profundamente marcado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, desde o primeiro momento, procurou em transmitir de alguma forma com os seus desenhos, mensagens otimistas e humanitárias. Seu primeiro trabalho de importância foi feito quando tinha apenas 20 anos. Foi à obra Shintaka Rajima, de 1947. O mangá moderno do pós-guerra teve as suas origens nas mãos desse jovem promissor, que se inspirou na Ilha do Tesouro, de Louis Stevenson, para superar a crise econômica que o Japão enfrentava depois da Segunda Guerra Mundial. Mesmo com a quase extinção da indústria editorial, gerada pela ditadura do imperador Hiroito, a Nova Ilha do Tesouro de Tezuka atingiu a surpreendente marca de 400 mil cópias vendidas. Esse trabalho possuía todos os elementos para gerar uma nova era para os quadrinhos japoneses, onde surgiriam novos desenhistas talentosos para criar histórias nunca antes vistas pelo oriente e pelo ocidente.
A primeira novidade, na história, para os leitores de a Nova Ilha do Tesouro, era uma seqüência, onde o protagonista busca chegar de carro ao cais, o mais rápido possível, antes que o seu barco partisse. Nos mangás anteriores, feitos antes da Segunda Guerra, uma ou duas páginas seria mais do que suficiente para mostra essa cena específica. Tezuka gastou oito das 180 páginas do seu trabalho para mostrá-la. Isto era diferente ao que os leitores de mangás estavam acostumados a ler até então.
Nessa parte, Tezuka retratou o rosto do garoto com uma perspectiva para o banco do motorista, deslumbrando a estrada e paisagens por onde o carro passava. Tudo isso era como se fossem trechos de um filme colocados diretamente nas páginas. Foi o início da utilização de linguagem cinematográfica nas histórias. Isso levou a caracterização de a Nova Ilha do Tesouro de “como um filme”. Tezuka pode ter se inspirado no cinema para criar estas técnicas, mas de qualquer forma as imagens do mangás não se movem.
Até porque, essa técnica era utilizada apenas na abertura e não tinha muito haver com a narrativa principal. O fato desde trabalho como um todo, tivesse impressionado os leitores por essa técnica cinematográfica de enorme impacto nessas poucas oito páginas, tornava o mesmo irrelevante em relação às inovações trazidas por Tezuka. Esta obra tinha mais do que simplesmente só um enredo.
A Nova Ilha do Tesouro tinha cenas mais bem construídas e o desenvolvimento de uma narrativa mais fluída. A narrativa do mangá descende de histórias através de imagens conhecidas como "emonogatari". Nelas, são as sucessões das imagens entre os quadros e as cenas que contam a história. Uma boa síntese na construção das cenas é de uma importância vital para o seu desenvolvimento. A Nova Ilha do Tesouro de Tezuka tornou isto muito evidente. O seu aparecimento foi como a usurpação da poesia pela prosa, ou, ainda a troca do romance medieval pelo romance moderno.
Este novo veículo era como um filme para ser comparado com a tradução japonesa do teatro de Kabuki e do Noh. Os europeus viam o mangá como cinematográfico, até porque as exposições de cenas em seqüência européias estavam relativamente desenvolvidas até então, se comparadas com as japonesas. Apesar de o conteúdo parecer sofisticado, a técnica tinha ainda que alcançar o nível da prosa moderna. A geração da década de 50 viu, com o sucesso de Tezuka, o aumento do número de mangakas e de mangás no Japão.
Nessa mesma época, o quadrinho japonês, que ainda era identificado como um produto voltado para crianças passou a ser lido também por adolescentes. Esse público que cresceu lendo mangá, não foi capaz de parar o hábito depois de terem atingido a maturidade. Com o surgimento desse novo tipo de público leitor, os mangás conseguiram quebrar essa visão dos quadrinhos como infantis, cuja ideologia tinha sido passada pelas antigas gerações. Na década de 60, essa geração passou a ser formada também por recém-chegados no mercado de trabalho e por estudantes universitários.
Dessa forma, o mangá moderno de Tezuka passou a sofrer várias mutações e adaptações nas histórias para atingir a admiradores mais críticos em relação ao que lêem. O quadrinho japonês passou a ser considerado como um novo veículo de entretenimento e informação. Osamu Tezuka foi o pai dos famosos olhos grandes, a marca registrada de qualquer mangá e anime na atualidade.
Além dos olhos, Tezuka talvez criou as linhas rápidas (essas linhas que vêm do fundo do desenho, quando um personagem está em movimento). Isto e o seu estilo dinâmico de fazer desenhos foram um dos segredos do seu êxito. Quando veio a fama nos anos 50, seu estilo foi imitado, por toda uma geração de desenhistas de mangás: olhos grandes, linhas rápidas, traços simples e muita ação.
É importante notar que Tezuka foi capaz de incorporar as técnicas do mangá um novo gênero conhecido como Gekiga que surgiu nos anos 60 sem render-se completamente a ele. O gekiga apareceu pela primeira vez em livros produzidos por bibliotecários em 1957. Eles tiveram a narrativa de Tezuka como ponto de partida, mas a desenvolveram sobre outros aspectos. Seu criador foi Yoshihiro Tatsumi. Esse artista buscou criar uma nova geração de leitores, que formaria uma espécie de movimento de rebeldia similar ao dos hippies e do Rock nos Estados Unidos nos anos 60 e 70.
Os jovens nipônicos passaram a criar grupos de protestos contra as desigualdades sociais. Sabendo se aproveitar desse novo estilo, Osamu Tezuka conseguiu fazer com que o seu trabalho tivesse uma grande influência nos jovens artistas depois da Segunda Guerra. O próprio Tatsumi apropriou-se da parte mais realística e sombria do universo do criador do Mangá moderno. O resultado disso foi à criação do grupo Tokiwa, onde muitos se tornaram profissionais de mangá sob a instrução de Tezuka.
Para a maioria, o seu trabalho era de natureza didática e direcionada aos jovens que estavam na direção certa. Diferente, da forma simplista e moralista do mangá antes da guerra, as obras de Tezuka ganharam uma roupagem moderna e contemporânea. Entre os artistas influenciados por Tezuka encontravam-se desenhistas, cujas obras não eram necessariamente educacionais ou didáticas. Estes artistas escreviam para uma audiência da sua idade no fim da adolescência e produziam impressões realistas da crueldade da sociedade e da vida em geral. Com essa fórmula de pôr histórias maduras nos mangás, o gekiga formou a sua primeira geração de desenhistas alternativos. Muitos consideram essa fase como a Era de Ouro dos Mangás.
Em meados dos anos 60, a geração mangá entrava na universidade e exigia um aumento de mangás voltados para estudantes universitários e adultos. Isto foi uma grande oportunidade para essa nova geração de artistas, os criadores do gekiga, os quais corriam riscos de desaparecer, devido à diminuição das Livrarias de Empréstimos, em virtude do surgimento da TV. Assim, eles passaram a produzir trabalhos que abordavam temas até então nunca antes vistos nos mangás centrados na criança como trabalhos de história, problemas sociais, eventos de informação e amor.
Tezuka criou mangás para praticamente todos os estilos e gostos conhecidos: histórias de humor, infantil, romance, guerra, biográficas, ficção científica, terror, policial, espionagem, capa e espada, fantasia e até de erotismo. E deixou uma grande herança que moldaria os passos galgados pelos mangás para chegar no nível de sucesso mundial dos dias atuais.

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